quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Capítulo Dois – Carpe Diem?

Capítulo Dois – Carpe Diem?

Melanie sabia que a mãe não tolerava dirigir à noite, nem quando chovia. Eram quase dez horas; chovia forte, e elas estavam no interior do Fiesta, na estrada. A garota recebia no próprio corpo toda a tensão que sua mãe sentia ao se concentrar no pequeno vislumbre da rodovia, possível através da densa camada de água que escorria pelos para-brisas. Estava no banco do passageiro, fingindo-se tranquila, ouvindo música em seu Mp4. Mas, por muitas vezes, apertou o pé contra o carro, como se fosse ela mesma que estivesse dirigindo. A mãe mostrava-se muito concentrada para notar isso; aliás, Melanie considerava que, já há muito tempo, ela não vinha notando muito do que a filha fazia. Estava para sair de mais um emprego. O quarto, em menos de dois anos. Flávia sempre demonstrou ser irrequieta, contrastando com o jeito passivo de Melanie. Mas, dessa vez, a garota pressentia que algo não ia bem; só não sabia o que.

- Tenho que ir para outra cidade. Preciso resolver algumas coisas, mas é por pouco tempo. Preciso que você e Nicolas entendam. – Melanie relembrava o que dissera a mãe, enquanto assistiam à novela, naquela noite.

“Como eu posso entender? E os meus planos? E as coisas que eu teria que resolver? Como ficarão?” - pensou Melanie ao lembrar a conversa.

“Que m...” – pensaria em um palavrão quando ouviu um ainda pior da boca da mãe. Sentiu os solavancos. Ela havia saído da estrada outra vez e quase batera em um barranco. Tirou os fones e tentou parecer natural, apesar de estar com muito medo. A mãe olhou-a, rapidamente, com aquele olhar querendo dizer:

“O que foi? Falei! E daí? Eu posso; sou sua mãe.” - mas disse outra frase:

- Mel! Veja aí como está o seu irmão.

Melanie olhou para trás e constatou que Nicolas dormia pesado.

- Está bem! – respondeu Melanie – Para variar, está dormindo.

Flávia ouviu e continuou concentrada. A luz forte de outro carro que seguia na direção contrária cegou Melanie por alguns instantes. Instintivamente, ela colocou as mãos sobre os olhos.

- Eu sei que está cansada também. – disse Flávia, sem tirar a atenção da estrada – A gente já está chegando.

Ela pareceu hesitar, e Melanie percebeu. A garota ficou em silêncio. A mãe tentou alcançar seus pensamentos, examinando-a com o canto dos olhos.

- Entendo que você está chateada por toda essa viagem repentina. – continuou Flávia – Mas eu precisava mesmo fazer isso. E, afinal, já estamos aqui. Não dá mais pra voltar. Pelo menos, não por enquanto.
Melanie continuou em silêncio, engolindo muitas palavras que gostaria de dizer. Mas sabendo que em algo, realmente, a mãe tinha razão. Não dava mais para voltar.

- Quem sabe você até gosta de lá... – prosseguiu Flávia – Vai ser por poucos dias. Além do mais, é muito bonita a cidadezinha.

“Cidadezinha”. Isso fez Melanie lembrar-se de certa vez, quando ainda devia ter a idade do irmão. Uns oito ou nove anos, talvez. E ouviu o nome daquela cidade pela primeira vez. Monte Seco. Lembrou, porque riu ao ouvi-lo, achando-o engraçado. A mãe, na época, falava com alguém no telefone também. Melanie não sabia quem era. Depois de algum tempo, ela começou a ficar irritada e repetia em tom áspero que jamais voltaria a pôr os pés em Monte Seco. Jamais. Depois disso, nunca mais ouviu a respeito. Até um dia atrás, quando soubera que a tal cidade de nome engraçado não mais parecia tão engraçado assim.

- Não consigo entender uma coisa... – resmungou Melanie – Por que nós vamos pra esse fim de mundo?

- Já lhe falei. Eles precisam da minha presença por lá, pra resolver algumas coisas. - respondeu ela - Fique tranquila, pois quando tudo se acertar, em seguida a gente dá meia-volta. Arrumei um lugarzinho bem família pra ficarmos. Vai ser bom pra vocês também.

- Nada disso. – respondeu Melanie, no ato - No que isso vai fazer bem pra mim?

- Vai sim. Você vai ver.

- Claro! Vou ver as minhas férias afundarem. Eu bem que poderia ter ficado na casa de uma das minhas amigas.

- Meu Deus, Melanie! Você está parecendo uma criança mimada. - Flávia olhou rapidamente para a filha e voltou a concentrar-se na estrada – Eu sei que você não é assim.

Melanie sabia que nisso Flávia também tinha razão; ela não era de agir assim. Tinha mais consciência e juízo do que muitas de suas amigas. Mas essa reviravolta repentina, além de mudar seus planos, fez com que mudasse. Ficou mais amarga. Mais triste.

- Como as aulas ainda vão demorar uns dias pra começarem, vocês dois vão ter tempo de sobra pra conhecer a cidade e fazer novos amigos antes de voltarmos. - Flávia parou bruscamente de falar, percebendo o desinteresse de Melanie na conversa - Por que não tenta dormir? – prosseguiu.

- Não vou conseguir.

A mãe colocou a mão sobre a perna da filha e logo a retornou ao volante.

- Tá bom. – suspirou, não conseguindo esconder a tensão – Só continue prestando atenção no seu irmão.

Melanie percebeu, nesse instante, que, além de estar preocupada com o perigo da estrada, a mãe também sentia medo. Algum problema tirava a paz de Flávia; e ela demonstrava não querer dividir com ninguém o que a estava preocupando. Tinha também outro agravante; recaía sobre ela a responsabilidade de as coisas darem certo novamente. Se seus planos não correspondessem, teria que procurar outro emprego quando retornassem.

Nas próximas quase duas horas que se seguiram, Melanie permaneceu em silêncio, ouvindo as poucas palavras esboçadas pela mãe, a respiração do irmão no banco de trás e o barulho da chuva que diminuía gradativamente, até cessar por completo. Pararam em um posto de combustível, e Flávia não demorou a descer para pedir informação, colocar gasolina e comprar alguma comida para comerem. Nicolas acordou.

- A gente já chegou? – perguntou ele, bocejando.

- Ainda não.

- Falta muito?

- Acho que não. Mamãe foi ver.

- Será que fica muito longe? - repetiu a pergunta.

- Não sei, garoto. - Melanie esbravejou.

- Quero ir ao banheiro.

Melanie lembrou-se de quando se mostrava mais atenciosa no cuidado do irmão. Ao contrário de muitas crianças que ficam enciumadas com o nascimento de um irmão mais novo, ela amou-o desde o primeiro dia. Apesar de, ultimamente, ele estar se tornando um peso, ela, assim mesmo, amava-o sem medidas. Fazendo o papel de irmã mais velha, a garota olhou para a porta de onde, supostamente, seria o banheiro; estava semiaberta. Era perto do local em que seu carro estava estacionado.

- Desce e vai lá. – apontou a direção - Só não demore.

Nicolas abriu a porta do carro e seguiu até o banheiro, arrastando os braços, parecendo um pouco arqueado pelo sono. Ele sempre fazia isso toda manhã; era sua marca registrada. Melanie observou-o entrar no banheiro e olhou para a loja de conveniência na tentativa de avistar a mãe. Não a viu. Provavelmente, ela estaria comprando comida ou conversando com o atendente. Encostou a cabeça no vidro e fechou os olhos. Instante depois, sentiu a cabeça pendendo para frente e segurou-se para não dormir; não havia percebido o quanto estava cansada. Seu corpo doía, os olhos pesavam. Quase adormecia quando foi tomada por uma sensação que nunca antes havia experimentado. Como um choque, uma corrente elétrica envolvia-a por inteiro. Acordou de sobressalto, olhou na direção do banheiro em que Nicolas estava e viu flashes de luzes saindo pela fresta da porta. Era estranho, como se fosse o flash de muitas máquinas fotográficas ao mesmo tempo. Olhou à loja de conveniência e não viu sua mãe. Desceu cambaleante do carro, as luzes continuavam dentro do banheiro. Melanie notou que uma placa de publicidade, que anteriormente se agitava histérica pelo vento, agora estava parada. Nem vento mais tinha, nem barulho de nada; tudo se mostrava muito quieto. Seguiu para o banheiro e só conseguia ouvir o barulho dos próprios passos; tinha a impressão de caminhar em slow motion.

- Nicolas!

Chamou pelo irmão antes de entrar. Ele não respondeu. Aproximou-se da porta e, devagar, foi abrindo-a. As luzes intensificaram-se. Melanie morria de medo, mas precisava entrar. Podia ouvir o bater acelerado do seu coração. Tremia. Entrou chamando por Nicolas de novo e não ouviu resposta. Então, escutou algo indescritível, talvez como se muitas espadas travassem uma disputa. As luzes eram muito fortes e piscavam intensamente. Segurou-se na parede para não cair e gritou:

- Nicolas!

Tudo girou ao seu redor. Ela sentiu suas pernas bambearem.

- Não tema!

Uma voz suave, quase inaudível, sussurrou levemente em seu ouvido. Sentindo como se fosse desmaiar, Melanie teve a percepção de que algum ser sobre-humano amparava-lhe, encostando-a à parede. Tentou olhar ao redor e verificou que estava bem escuro; as luzes haviam cessado. Sentiu alguém passar e esbarrar em seu corpo combalido, mas não conseguiu identificar o que era; apenas viu o vulto saindo pela porta.

- Mel!

Ela ouviu a voz do irmão enquanto se recuperava, escorando-se na parede.

- É você, Nicolas? – perguntou ela, ainda bastante zonza.

- Claro que sou eu.

Nicolas veio ao seu encontro. Melanie já podia vislumbrar os olhos inocentes do irmão. Ele abraçou-o, e os dois saíram do banheiro.

– Estava muito escuro lá dentro. Aquele homem ali ficou comigo pra eu não ficar com medo. – Nicolas apontou em direção a uma caminhonete velha que estava estacionada. Deu tempo de Melanie ver o homem que entrava nela.

- Quem é aquele homem?

- Eu não sei. Ele estava lá dentro. – respondeu Nicolas - Ele perguntou um monte de coisas pra mim.

Ouvindo um barulho de motor, Melanie olhou de novo para onde estava a caminhonete; o homem encarou-a e, mesmo um pouco distante, ela conseguiu ver a negritude dos seus olhos. Ele sorriu. Era um sorriso sarcástico. Acenou na direção deles e saiu para a estrada.

- Você já sabe, Nicolas. Não pode falar com gente que você não conhece. É perigoso.

- O que é perigoso?

Flávia chegou e escutou apenas o fim da frase. Melanie compreendeu que não deveria falar nada à mãe, pelo menos, não por enquanto. Percebeu que, se falasse sobre o episódio do banheiro, Flávia iria querer sair atrás de polícia, ou pior, do próprio homem da caminhonete.

- Lugar escuro, mãe. - Melanie tentou contornar – O Nicolas queria fazer xixi no banheiro. - ela olhou para Nicolas para que ele concordasse com a história - Estava escuro lá dentro. Aí, falei pra ele fazer ali no cantinho mesmo.

Nicolas acenou com a cabeça, dando crédito à narração da irmã, Flávia não acreditou muita na história, mas fez sinal para que entrassem no carro. Os filhos obedeceram, e ela também entrou segurando uma sacola, que pôs sobre o colo de Melanie, enquanto colocava a chave na ignição.

- O rapaz me falou que faltam menos de três quilômetros de asfalto e mais uns cinco de estrada de chão por um desvio, e chegamos.

Melanie abriu a sacola plástica e viu bolachas, chocolates e refrigerantes.

- Eu sei o que você está pensando. - disse Flávia, dando a partida e colocando a marcha – Mas hoje eu faço uma exceção. Podem comer essas bobagens. É só isso que eles tinham lá mesmo.

Instantes depois, eles já estavam novamente na estrada. Só que, agora, Melanie refletia e considerava que sua mãe havia se enganado. Ela realmente olhava para o interior daquela sacola, mas, na verdade, o que ela pensava era sobre tudo que acontecera há pouco, no banheiro.

O carro foi parando. Isso fez com que Melanie despertasse. Abriu com dificuldade os olhos e ainda deu tempo de ver a mãe estacionar. Olhou para trás, e Nicolas encarou-a sorrindo.

- Chegamos. - disse o garoto, parecendo realmente não se importar por toda a mudança pela qual estava passando.

– Já era hora. - respondeu Melanie, tentando identificar onde estavam.

- Vamos ficar aqui esses dias. - disse Flávia, apontando para uma casa grande e velha.

Melanie olhou com desapreço para o lugar. Pareceram-lhe aquelas pousadas administradas por velhas senhoras, com cara amarrada e olhar desaprovador a tudo que o hóspede faz, principalmente os da idade dela e do irmão.
- Vamos descendo. – sugeriu Flávia – Porque, amanhã, vai ser um dia muito cheio, e precisamos descansar um pouco.

Desceram e seguiram em direção à entrada. Flávia carregava uma pequena bolsa com documentos e roupas. Passaram em silêncio pelo portão e continuaram até a porta da pousada. Era uma casa enorme de madeira e, apesar da pouca luminosidade, Melanie notou que fora pintada com um verde-musgo que a deixou ainda mais desagradável. Ostentava uma área que se estendia por toda a frente. Alguns poucos vasos pendurados com samambaias eram os únicos enfeites. A porta de entrada era grande, e seu tom amarronzado ajudava a denunciar o mau gosto do proprietário do local. Ouviu-se o barulho da chave sendo girada. Melanie olhou na direção da fechadura e concluiu que, com certeza, sua fabricação não era deste século. A porta abriu lentamente, e o rosto sorridente de uma menina, de uns seis ou sete anos, apareceu.

- Dona Flávia? – perguntou a garotinha.

- Isso mesmo! – respondeu ela, retribuindo o sorriso.

- Oi! Eu sou a Raíssa! Fizeram uma boa viagem? - a menina escancarou a porta – Minha avó está esperando vocês.

A menina deu as costas e entrou. Olhando para Flávia, Melanie identificou o motivo do seu leve sorriso de contentamento. Possivelmente, a mãe estaria fazendo comparações em sua mente. Era o que sempre costumava fazer quando se deparava com uma garotinha precoce. Pelo que Melanie sabia, e a mãe não a deixava esquecer, ela já fora espontânea e prodígio desse jeito, uma Lisa Simpson.
Entrando por último, Melanie perguntava-se que assuntos teriam a mãe para resolver numa cidade como aquela... Não poderiam ser resolvidos por telefone? Por e-mail, quem sabe? Correu os olhos pela grande sala de entrada. Móveis antigos, quadros antigos; tudo antigo. Uma TV pré-histórica, daquelas que parece preto-e-branco, estava desligada no canto. Se a TV era assim, computador, então, se existisse um por ali, é claro, deveria funcionar à manivela. Melanie olhou para o sofá coberto por uma capa com estampas florais, e este pareceu exercer sobre a jovem uma força de atração muito grande. Vencida, ela sentou-se pesadamente no desconfortável estofado, cruzou os braços e paralisou os músculos do corpo, permanecendo inerte. Flávia e Nicolas adentraram pelo corredor que levava aos demais cômodos da casa, seguindo a efusiva Raíssa. O que uma menina na idade dela estaria fazendo acordada até aquela hora? Na verdade, isso não interessava à Melanie. Afinal, agora, ela só nutria o desejo de dormir. Seus olhos pesaram novamente, e ela foi soltando-se vagarosamente no sofá, encostando a cabeça na lateral e recolhendo as pernas sobre ele. Fechou os olhos.

- Não tema!

Melanie deu um sobressalto e sentou-se no sofá. Seu coração disparou; ela não soube discernir se ouvira aquela mesma voz suave sussurrar no seu ouvido novamente, ou se apenas lembrou o momento em que a vivenciara naquele banheiro do posto de gasolina.

- O que foi?

Ela olhou na direção de onde partiu a voz infantil que agora a indagava. Raíssa, com a cabeça levemente inclinada para o lado, depositava-lhe os olhos azuis inquisidores, fixados nela.

- Nada! - respondeu Melanie, sem ainda compreender o que sentira.

A garotinha sorriu, e Melanie notou a perfeição dos seus dentes. “Pelo menos, eles devem ter dentista na cidade.” – pensou Melanie.

- Aqui não! Mas tem um que vem toda a semana. Dr. Marcos. – disse Raíssa, enquanto olhava a garota deitada sobre o sofá. Depois meneou a cabeça e saiu saltitante.

“Como ela adivinhou o que eu pensei?!” – Melaine ficou curiosa, mas nem deu tempo de digerir o que acabara de acontecer, e sua mãe, ladeada de um Nicolas sonolento, entrou na sala. Uma senhora idosa, segurando a mão de Raíssa, entrou na sequência. Vestia uma camisola e um penhoar azul; ela sustentava um ar nada severo, bem ao contrário do que Melanie havia imaginado. Óculos de aros grandes, cabelos totalmente brancos. Possuía um andar confiante, apesar da idade avançada.

- Essa é a minha filha Melanie. - frisou Flávia, apontando na direção de Mel, que imediatamente se levantou, esboçando um sorriso endereçado à velha senhora.

- Seja bem-vinda, minha filha. – disse a mulher, num tom cordial.

- A Dona Carmélia é a proprietária daqui já há muitos anos. – completou Flávia – E vai cuidar muito bem da gente.

Sem saber o que dizer, ou não querendo mesmo, a garota concordou com um aceno de cabeça.

- Vocês devem estar muito cansados. Querem ir pro quarto, agora?

- Por favor, Dona Carmélia. – concordou Flávia.

- Por aqui. - a velha senhora apontou o caminho.

“E o restante das nossas coisas no carro?” - pensou Melanie, enquanto seguia a feliz comitiva. “Deixa lá. Acho que nem ladrão existe neste fim de mundo.”

- Você é engraçada! – disse Raíssa, rindo.

Melanie olhou surpresa para a menina um pouco à sua frente. Raíssa estava observando-a, com os luminosos olhos azuis.

- Fim de mundo... – repetiu a pequena.

Melanie nem tentou se aprofundar na tentativa de entender como a garotinha conseguia adivinhar seus pensamentos. Estava muito, mas muito cansada. E o término daquele dia estafante era o que ela mais desejava no momento.

Na manhã seguinte, Flávia havia dormido mais do que o costume. Estava, realmente, cansada. Dirigiu por muitas horas, quase atravessaram o estado. Nicolas também acordou tarde. Como poderia caber tanta sonolência num só corpo? Melanie perguntava-se. Ela, por sua vez, acordara antes de todos e pôs-se, em seguida, a olhar pela janela. As manhãs em lugares assim, tão bucólicos, são lindas! Melanie até estranhou o desejo que sentiu de sair por ali e dar uma volta. A impressão criada do lugarejo, na noite da véspera, poderia se dissipar com a luz do sol. À noite, fica difícil visualizar as belezas que uma cidade tem, por mais minúscula que possa ser. Monte Seco não deveria ser diferente... A garota precisaria, então, tirar a prova naquela manhã.
Antes mesmo de chegar à cozinha, Melanie sentiu o característico e delicioso aroma de café. Parecia que ela estava em uma fazenda. Só faltava ouvir o som de uma vaca, ou o relincho de um cavalo. Ela passou por um longo corredor e olhava as fotos penduradas na parede, imagens antigas. Possivelmente com pessoas da família da proprietária. Parou diante de uma que lhe chamou a atenção; era um grupo pequeno de pessoas enfileiradas e sorrindo. Certamente, todos da mesma família. Passou a imaginar, apontando com o dedo sobre a pessoa, o que cada um poderia representar dentro do círculo familiar. O homem de bigode, que usava chapéu e um terno velho, deveria ser o pai. A mulher de vestido simples era a mãe. O senhor mais velho, com a bengala e suspensórios, era o avô. À frente, duas menininhas muito sorridentes. A mais velha que usava um vestidinho mais claro abraçava a possível irmã mais nova. O seu rosto era um pouco conhecido para Melanie; parecia que já tinha visto a foto dela... A mais nova sorria, mostrando os dentes que faltavam. Ela era bem engraçadinha. Antes de seguir à cozinha, outro detalhe chamou-lhe a atenção. Lá no fundo, outra mulher, mais velha, com a cara fechada, observava a família que estava em primeiro plano. Ela tinha um olhar nada amigável.

“Se queria ser penetra na foto, pelo menos, sorrisse.” - pensou Melanie.

- Bom dia, criança! – cumprimentou Dona Carmélia.

Melanie virou-se e deu de cara com a amistosa senhora no fim do corredor que dava acesso à cozinha.

- Bom dia, senhora! – respondeu, ainda tímida, Melanie.

- Gosta de fotos antigas?

- Mais ou menos. – respondeu, sem graça – São da sua família?

- Digamos que sim. – respondeu a senhora, ajeitando o quadro que parecia estar um pouco torto – Se moraram nesta cidade, mesmo temporariamente, nesta pousada, então são da minha família.

Melanie sorriu por se sentir incluída na família da boa senhora. A mulher retribuiu o sorriso.

- Quer saborear um cafezinho que eu mesma torrei? – perguntou, com certo orgulho, Dona Carmélia.

Melanie respondeu positivamente, com vários balançares de cabeça.

- Eu garanto que você nunca tomou um café tão saboroso.

Dona Carmélia deu meia-volta e entrou na cozinha, seguida por Melanie. A garota experimentou o café, os pães, os bolos, as bolachas caseiras e outros quitutes colocados à sua frente pela sorridente proprietária. Como poderia dizer um “não” àquela senhora? Saiu da cozinha como se tivesse almoçado. Estava indo tomar um ar, quando se deparou com Flávia e Nicolas no corredor.

- Opa! Achamos a desaparecida! – brincou Flávia, olhando para Nicolas.

- Eu estava na cozinha. – respondeu Melanie – Vou dar uma volta por aí. Reconhecimento de território.

- Não vá se perder. – brincou mais uma vez Flávia, seguindo com Nicolas à cozinha.

- Como se isso fosse possível!
Flávia abraçou o filho, e seguiram pelo longo corredor. Melanie estava na porta de entrada quando olhou para trás e viu a mãe parada diante da mesma foto. A garota abriu a porta e saiu. A pequena cidade era ainda menor do que ela imaginara quando a mãe comunicara de sua intrépida decisão. Minúscula, sufocante. Andou algumas quadras, e a cidade terminou. O carro mais novo que viu era o deles; e ele já contava com mais de 10 anos de uso. Mas, ainda sim, tinha os seus atrativos. Poucos, mas tinha. As casas, na maioria muito simples, eram aconchegantes. Ao redor da cidade, podiam se notar vários montes que quase a circulavam, formando uma barreira natural. Um fator preponderante era ter poucas pessoas na rua; bem poucas.
Melanie, depois de andar algumas quadras, já estava voltando pela rua paralela e avistou uma placa com letras escritas à mão; dizia: Mercadinho do João.

“Oh! Criatividade do povo do interior.” – pensou ela, entrando no mercado.

Uma prateleira pregada na parede continha os itens da mais extrema necessidade: arroz, feijão, sal, açúcar, trigo; em geral, só alimento. Também algum material de limpeza e higiene. Uma mesa virou um improvisado balcão e, atrás dele, um homem, possivelmente o “João”, atendia uma garota, que aparentava a mesma idade sua. Melanie aproximou-se e notou que a pequena freguesa olhava-a de canto. Parecia envergonhada. O homem lançou, em sua direção, um olhar seco e balançou a cabeça, como dizendo:

“O que você quer?”

Melanie deu um sorriso amarelo, indicando que ele atendesse a outra garota primeiramente. Ele voltou a atenção aos produtos em cima do balcão e relacionava-os em um caderno.

- Pode levar, menina. – disse ele para a garota à sua frente.

Ela juntou os produtos rapidamente e saiu, quase correndo, sem mesmo olhar para Melanie. O homem fez o mesmo gesto que havia feito anteriormente. O balançar de cabeça indicando: “O que você quer?” Ela concluiu que deveria ser o jeito sutil e amigável que ele costumava atender às pessoas.

- O senhor tem Trident? – perguntou ela, olhando pelo balcão na tentativa de encontrar o que desejava.

- Não. – respondeu, secamente.

“Não?” – pensou Melanie – “Até no Pólo Norte deve ter chicletes!”

- Obrigada, então. – agradeceu Melanie pela simpatia do homem e saiu, desejando-lhe todas as bênçãos do mundo.

Na rua, Mel avistou ao longe a menina seguindo na direção da pousada e apertou o passo, tentando alcançá-la. Quando chegou a alguns metros de distância, ela gritou:

- Hei! Espere.

A menina olhou para trás e começou a andar mais rápido. Melanie diminuiu a passada. “Nossa, será que tenho lepra e não sei?” – pensou desgostosa.

Ela ainda viu a garota arredia entrar na casa ao lado da pousada. “Acabei de sair e já estou aqui de volta.” – concluiu Melanie, ao verificar que estava, novamente, em frente à pousada.

A garota torceu o lábio e procurou um lugar mais tranquilo, como se tudo ali já não fosse calmo, para sentar e dar um tempo antes de entrar. Evitaria um irônico “Já voltou?”, vindo da parte da mãe. Ela olhou mais adiante, seguindo pela rua que dava na autoestrada, um campo aberto, com uma grande árvore solitária no centro. Era um pouco longe; teria que vencer uma subida não muito convidativa, mas, pelo menos indo até a árvore, gastaria mais uma meia hora de tempo ficando por lá, antes de entrar.
Melanie estava debaixo de uma árvore que crescera sozinha, naquele espaçoso terreno. Quem a plantara não imaginou que uma visitante futura pudesse não saber identificar de qual procedência pertencia. Mel representava a garota da cidade grande, perdida e sozinha, que viera parar num lugar tão tedioso. “Não vai fugir de mim, vai?” – gostaria de perguntar para a árvore.
Ela obrigou-se a sentar e a encostar-se no tronco largo da árvore. Poderia ficar ali um bom tempo, ouvindo música, mas acabou esquecendo o Mp4 na pousada. O jeito era ficar olhando para o movimento da estrada que, de vez em quando, recebia um carro, passando em alta velocidade.
O vento soprava os galhos da árvore solitária, e esta parecia dançar, contente, pela presença incomum de uma pessoa usufruindo de sua sombra. Melanie olhava para a pousada e pensava por quanto tempo teria de permanecer ali, naquela cidade. Suas amigas deveriam estar cheias de planos. Ela, por enquanto, não fazia parte deles. Pensou em levantar e voltar ao quarto, para ficar ainda mais aborrecida, mas algo mudou sua intenção. Passando a uns 100 metros à sua frente, estava o maior homem que ela já tinha visto. Um poste ambulante, que devia ter bem mais que dois metros. Ele até caminhava com dificuldade. Melanie ficou de boca aberta vendo aquele homenzarrão passar ao longe.

- Wladmir! Espere!

Mel percebeu que alguém chamava o grandalhão. Ele parou e, muito lentamente, foi virando-se. Parecia que tinha uma grande dificuldade em se equilibrar. A garota viu quem o havia chamado. Era um sorridente rapaz. Moreno, de cabelos castanho-escuros, quase na altura do ombro. Era bonito. Estava sem camisa e vestia uma calça cáqui. Ele parou ao lado do imenso homem e parecia um anão. Melanie riu. O garoto mal alcançava a cintura do outro!

- Não fica chateado, não, Gigante. – Melanie ouviu o rapaz falar – Mas é que não precisa você ficar atrás de mim toda a hora.

“Hum. Devem ser de circo; sei lá.” – pensou Melanie.

O rapaz devia ser algum artista que o grandalhão precisava proteger, ou coisa assim. Tem muita situação estranha neste mundo... Nesse caso, Melanie olhou bem para o homem para tirar a prova de que ele não estaria usando uma perna de pau. Quem sabe? Não dava indícios disso. Sua excessiva altura pertencia a ele mesmo. Um carro surgiu na estrada, e o motorista, quando avistou o grandalhão, foi diminuindo a velocidade e passou ao lado dos dois com a nítida expressão de espanto.

- Vamos embora, Gigante. – disse o rapaz, olhando o carro seguir e retomar sua velocidade normal – Já está chamando a atenção de novo.

O homem grande concordou com um aceno de cabeça. O rapaz sorriu e pulou em suas costas. Foi uma cena engraçada, e Melanie não aguentou; mesmo sem querer, riu alto. Os dois olharam para a garota, que até então não tinham notado debaixo da árvore. Ela corou e baixou os olhos. O rapaz desceu das costas do grandalhão. Ficou parado por alguns segundos, olhando para Melanie, que espiava discretamente e estava ficando angustiada pelo olhar insistente do rapaz. Ele não se moveu até fazer um gesto esquisito, sorveu o vento que seguia na sua direção e que passava por Melanie, balançando as folhas da árvore.

“Que cara estranho.” – pensou ela.

- Temos que ir. – disse o grandalhão, e Melanie identificou seu sotaque; era russo.

- Já vamos, Gigante. – disse o rapaz, ainda olhando para Melanie.

- Ir agora! – frisou o russo.

O rapaz olhou para o homem e, em seguida, desviou seu olhar para Melanie. Parecia que tinha a intenção de falar alguma palavra, mas se arrependeu. Lentamente seguiu até onde estava o grande homem que, equilibrando-se em suas enormes pernas, andava pela estrada em direção à cidade. Melanie notou que o rapaz, a cada dois ou três passos, olhava para trás, até entrarem em definitivo em Monte Seco.

“Cada maluco!” – pensou, aliviada.

A garota esperou uns dez minutos, mais ou menos, e levantou-se. Nem sinal da dupla de esquisitos. Já estava mais do que na hora de retornar à pousada.

3 comentários:

  1. Wow... se não me engano, foi Stephenie Meyer que disse que em cidades pequenas não existem segredos... hehhe

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  2. Eh segredos e coisa estranhas como um gigante e anão desfilando em plena luz do dia.......
    cidades pequenas são bem estranhas msm
    kkkkkkkkkkkk

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  3. É concertesa cidades pequenas são estranhas mesmo

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