segunda-feira, 2 de março de 2009

Os Segredos de uma Noite

Queridos!!!

Os dez primeiros capítulos estão revisados para o livro e já os postei aqui também. Algumas pequenas modificações foram feitas para publicação. Em breve passarei a data de lançamento do livro pela Editora Multifoco do RJ.

http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=53144736 - Comunidade de Segredos de uma Noite.

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"Alguém, certa vez, falou que em cidade pequena não existem segredos. Esse alguém, certamente, jamais passou por Monte Seco... Eu passei."

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Capítulo Dez – Eu Contra a Noite.

Capítulo Dez – Eu Contra a Noite.

Seu rosto ainda permanecia contraído, talvez pela tensão dos momentos que acabara de sentir, algumas horas atrás. Melanie permanecia sentada, completamente absorta, no sofá, em frente à velha TV; as imagens indefinidas passavam diante de seus olhos, mas a garota não as captava. Concentrava-se em sua mente, tentado esmiuçar cada pequeno instante vivido. Flavia estava ali bem ao seu lado e, já há alguns instantes, percebera que algo não estava de acordo.

- Tudo bem com você, Mel?

Melanie, lentamente, voltou à cabeça na direção da mãe.

- Tudo. - respondeu automaticamente, voltando a olhar à tela da TV.

Mas Flavia, como toda mãe, que sabe reconhecer quando algo não vai bem com o filho, insistiu.

- Tem certeza? Você pode falar comigo.

- Está tudo bem, mãe. – respondeu ela, ainda olhando para a TV – Pode ficar tranquila.

- Eu entendo que esses dias não estão sendo fáceis pra você. Por isso, se quiser conversar comigo sobre alguma coisa, eu estou aqui. Ok?

Melanie pensou que, de repente, a mãe estaria sabendo de algum daqueles acontecimentos. Quem sabe seria correto perguntar sua opinião? Mas o que Flávia acharia se, de uma hora para outra, contasse os momentos tensos por que passou? Melanie considerou melhor não falar nada; já bastava ela estar enlouquecendo com tudo isso.
Dona Carmélia adentrou a sala.

- Querem jantar agora, meninas?

Flavia levantou-se e estendeu a mão na direção da filha.

- Vamos, querida?

- Não, mãe. – respondeu Melanie – Estou sem fome.

- Quer que eu traga?

- Obrigada, mãe. Não estou a fim mesmo.

Dona Carmélia aproximou-se de Flávia e segurou-a pelo braço.

- Venha você. – falou a bondosa senhora - Se ela sentir fome depois, você prepara alguma coisa para ela.

Preocupada, Flavia olhou para a filha que permanecia imóvel; tinha mais do que certeza de que não adiantaria querer forçar alguma atitude ou reação com a filha. Ela iria comer sim, mas quando sentisse vontade.
Era hora do jantar. Melanie sabia que, logo na sequência, viriam as longas horas de novela após novela, e ela poderia, enfim, ter um tempinho só para ela. Esperou alguns minutos depois que todos foram para cozinha e seguiu para o quarto. Deitada na cama, olhando para os nós do teto de madeira, Melanie reviveu, em sua mente, momentos cruciais dos eventos da tarde daquele dia. Recordava o homem, de quem não conseguia lembrar o nome, pois a velha o tinha dito só num determinado momento. O que ele estaria disposto a fazer com ela? Como pôde ter se lançado daquele jeito no ar? Foi um salto impossível para um humano. Estava ela a certa distância do muro, e ele, aterrissou bem na sua frente.
E Julian? Por que a tratou daquele jeito depois de ter sido tão gentil? Por que esse rapaz causava-lhe uma atração tão forte? Nutria esse sentimento tão inusitado por uma pessoa que acabara de conhecer. Ela mal o conhecia e, ainda assim, sentia a necessidade de saber mais sobre ele. E o lugar em que ele morava? Nossa! Que lugar estranho. Parecia uma fortaleza. O que aquelas pessoas teriam para esconder?

- Todos nós temos coisas a esconder.

Ela olhou na direção de onde a voz fazia-se ouvir. Uma voz firme, com leve sotaque, que ela não conseguiu identificar ser originário de qual país. Melanie estremeceu, havia alguém sentado na cadeira, no canto do quarto. Era alguém trajando um caro terno preto. Pernas elegantemente cruzadas. Oculto pela penumbra, não deixando à mostra o rosto. Parecia um déjà vu. Ela lembrou-se, quase que imediatamente da situação semelhante que vivera quando teve seu quarto invadido, em Londrina. Nesse instante, foi tomada pela mesma sensação a que estava acostumando-se a sentir. As luzes, agora, estavam ainda mais fortes, ofuscando a sua visão. Os sons de um campo de batalha penetravam na mente da garota. Ela ouvia as espadas, os gritos e os urros de dor daqueles que recebiam seus golpes mortais e, nitidamente, como se estivessem acontecendo ali, naquele instante. Era ensurdecedor!

- Não tem por que ficar com medo de mim. Não irei lhe fazer mal. Eu prometo.

Tarde demais. Melanie sentia-se aterrorizada. Desde que foram para aquela cidade, muitas situações fora do comum estavam acontecendo a ela. Agora isso; um estranho dentro do seu quarto, novamente, depois de tantos anos, prometendo que não lhe faria mal. Mas Melanie já estava sentindo-se mal. Muito mal.

- Melanie, – O estranho continuou - doce Melanie. Quer saber quem eu sou?

Ela, instintivamente, sentiu vontade de gritar, de sair correndo, desesperada. Mas apenas conseguiu consentir com um leve balançar de cabeça.

As últimas horas foram intensamente difíceis. Tanto que Julian limitou-se a pronunciar poucas palavras. Todos que passavam por ele encaravam-no, deixando transparecer o que estavam pensando a seu respeito. Sem nada mencionarem, queriam que ele compreendesse que suas ações inconsequentes foram desaprovadas por todos da família. Há muito tempo viviam em tranquilidade. Não estavam mais acostumados a lutarem pela sobrevivência. Quando sentiam a sede sobre o brilho de Luna, eram saciados pelas mulheres e serviçais; os poucos, assim como Wladmir, que viviam no seu meio.
Era uma casta diferenciada; podia transformar-se em qualquer noite se preciso fosse. Isso foi útil antes desse tempo, quando viviam em guerra com os odiosos. Nos dias atuais, apenas se sujeitavam à poderosa lua cheia que, inevitavelmente, traz todo o furor da maldição. A única escolha que podiam ter era esconderem-se do lado de dentro da grande muralha e permanecerem aos cuidados atentos dos guardiões. Raras eram as mulheres da família que se transformavam. Devido a isso, podiam se manter longe das correntes. Os homens não tinham essa alternativa.
Cassius, filho primogênito de Agnes, era detentor de duas grandes virtudes. Fora um guerreiro louvável, cultuado pelos seus e temido pelos inimigos. Era também um estudioso de grande talento, capaz de conduzir os experimentos que causaram a mutação benéfica nos membros da família. Sua utopia era a de descobrir uma cura, um livramento para todos. Estava prestes a conseguir algum resultado quando, em uma emboscada, fora atacado por um grupo de inimigos e aniquilado. Ninguém ainda conseguia entender o que realmente acontecera. Cassius não era de facilitar ao ponto de ser apanhado. Desde então, os cuidados com os membros do clã foram redobrados.
Julian sentia na pele o peso de ser filho de Cassius. Todos almejavam que ele fosse como o pai, mas o rapaz era diferente; não se sentia atraído pelas atividades ou ações que fizeram do pai uma lenda. Ele não desejava seguir esse caminho. Queria ser um jovem normal. Não queria ser uma lenda.

Angelique entrou no quarto de Julian e aproximou-se do primo. Ele estava atado às correntes.

- Não vai ficar com os outros? – disse ela, ao entrar.

- Não sou uma boa companhia pra ninguém hoje. Inclusive pra você. – respondeu, cabisbaixo.

- Que pena. Porque recebi a missão de ficar do seu lado.

- Era só o que estava faltando! Trocaram você pelo Gigante.

- Isso aí. O monstrão vai ter que ficar lá no alojamento.

Julian recostou a cabeça na parede e, da janela, olhou para o céu estrelado. A noite estava chegando. E a dor também.

O tremor das mãos de Melanie, apertando com força o cobertor, fez o estranho que invadira o seu quarto repetir a pergunta.

- Então, Melanie. Quer saber quem eu sou?

Melanie repetiu o mesmo gesto, autorizando-o a apresentar-se. No momento, ela sentia-se impossibilitada de pronunciar qualquer palavra. O homem compreendeu sua condição e inclinou-se para frente, revelando a sua face.

- Eu sou Camuel.

Incrível. Melanie não saberia descrever o que acabava de sentir. Era o belo estranho, o mesmo que a observava do lado de fora na noite anterior. Os mesmos cabelos hirtos iluminados pelo clarão azul da lua. Mas algo estava diferente. Desprovido de um relance de vida, o único tom de cor que se destacava em seu rosto eram as linhas avermelhadas das veias que sobressaíam debaixo da pele alva. Muito alva. O vampiro era como um busto de gesso, na cor e na frieza dos olhos. Mas, ainda sim, tinha os traços perfeitos, angelicais.

- Agora quer saber por que estou aqui?

O medo da garota estava chegando ao limite. Ela sentia que um grito de terror sairia de sua garganta a qualquer momento. O vampiro também pressentiu. Com um gesto suave, deslizou o braço pelo ar na direção de Melanie e depositou seu dedo nos lábios da garota, silenciando-a.

- Só não pode fazer isso. Eu já lhe falei; não vou lhe fazer mal.

Melanie fechou os olhos e iniciou um choro contido. Camuel, calmamente, retirou o dedo dos lábios da menina e passou sobre o seu rosto, estancando a lágrima que caía.

- Vou precisar repetir a mesma pergunta pra você a noite toda?

Melanie, timidamente, olhou nos olhos de Camuel; eram azuis brilhantes que contrastavam com a pele infinitamente branca. Olhos gélidos e vazios. Ele fez surgir em suas mãos, como em um passe de mágica, uma linda rosa vermelha. O vampiro ofereceu-a, e Melanie segurou-a com as mãos trêmulas.

- Então, vou lhe dizer por que estou aqui, Melanie.

A garota concordou.

- Primeiramente, quero que você olhe pela janela.

Mel não conseguia compreender a intenção do rapaz que estava à sua frente. Por que ele queria que ela olhasse pela janela?

- Por favor, – pediu Camuel, com extrema gentileza – olhe pela janela.

A garota, bastante nervosa e ainda tremendo muito, seguiu cuidadosa na direção da janela. Sem olhar para Camuel, ela depositou os olhos na direção da rua e viu-os parados. Eram quatro no total, iluminados pela mesma lua azul. Enfileirados, dois homens e duas mulheres. Chamavam a atenção pelas roupas que vestiam. Elegantes. Todos muito bonitos. Incrivelmente radiantes.

- São a mais pura criação da natureza. – disse Camuel, enquanto se aproximou por trás de Melanie, segurando-lhe os braços – Não existe nada igual a eles. São o ápice de tudo que existe. São eternos.

O primeiro deles, Iori, o mais alto, era negro, natural de Moçambique. Não possuía pelo algum sobre todo o corpo. Usava um sobretudo cinza-escuro e, por baixo, uma camisa branca de tecido fino. Tinha a cor do que mais adorava nos olhos; a cor do sangue. A mulher que estava ao seu lado era Charlotte. Alta, loira, francesa de olhos azuis cintilantes, cabelos que ostentavam uma longa trança que quase alcançava a altura dos joelhos. Um vestido prateado, que deixava seu colo feminil à vista, cobria o restante do corpo esguio. Estava adornada com um colar que carregava um medalhão, com o símbolo da Casa a qual pertencia. A outra mulher, um pouco mais jovem do que a primeira, era Rania. Uma morena húngara, de estatura mediana e corpo escultural. Os cabelos negros e encaracolados lembravam muito os de Ariela. Vestia um corselet branco debaixo de um sobretudo de camurça. Colada ao corpo, uma calça de couro preta, como a cor dos seus olhos. Também tinha em seu peito um medalhão. O último dos vampiros era Miguel. Nome de arcanjo, mas coração de demônio. Franzino, tinha os cabelos desgrenhados em um corte moderno. Ele usava os trajes brancos, destoando dos demais. Americano de descendência latina, parecia o mais irrequieto; no período em que Melanie observava-os da janela, ele revolvia-se de um lado para o outro, enquanto os demais continuavam imóveis. Camuel percebeu a movimentação desordenada do vampiro menor.

- O que foi, Miguel? Preocupado?

Os outros vampiros, enfim, realizaram um movimento. Como se sincronizados, olharam na direção de Miguel. O vampiro de branco saltou da rua em direção à casa. Novamente Melanie observou uma ação fora do comum. Parecia que estava em um sonho louco. Miguel aterrissou sob a janela de Melanie, colocando suavemente seus pés sobre o peitoril.

- Eu avisei, Camuel; não era uma boa ideia termos vindo.

Camuel sorriu, ignorando o alerta recebido de Miguel.

- Nem sempre suas premonições condizem com a verdade, irmão.

- Está avisado novamente, irmão.

A ênfase na palavra “irmão” denunciou a ironia com que Miguel considerou a opinião de Camuel. Contrariado, impulsionou-se para trás e, num salto fenomenal, caiu ao lado dos outros três. Camuel voltou toda a sua atenção para Melanie.

- Agora você precisa saber o que realmente nós somos.

Por diversas vezes, Julian pegou-se pensando no quanto pessoas do mesmo sangue podem ser tão diferentes. Quando ele olhava para Angelique, não via nela nada que lembrasse o pai desprezível que a jovem tinha. A prima compactuava com ele em pensamentos e, muitas vezes, em ações. Ela também considerava que essa rixa antiga, iniciada há muitos séculos, e que persistia até aquele momento, deveria acabar. A longa trégua que mantinham as duas raças poderia ser eterna. Mas Marcus jamais permitiria que sua própria filha alarmasse suas ideias. Então, viviam os dois, Julian e Angelique, conforme as regras da família, mas tinham, no seu íntimo, outros desígnios.

- Me fale a verdade; por que você saiu escondido, daquele jeito, ontem à noite? – perguntou Angelique.

- Era preciso. – respondeu Julian – Tinha uma coisa que eu precisava fazer.

- Óbvio que sim. Senão você não sairia quebrando as regras.

- Não fui só eu que as quebrei.

- Eu sei. As regras servem somente para nós: os jovens.

Julian soltou um gemido. A hora da transformação estava chegando. Angelique aproximou-se da janela e olhou para o céu.

- Lua azul de novo. – exclamou a garota.

- Por isso saí ontem... – completou Julian com dificuldade.

- Claro! Nas luas azuis, você tem visões. – debochou Angelique.

- Não foi visão. Foi instinto.

- E teve alguma coisa a ver com aquela esquisitinha que esteve aqui, hoje à tarde, não é?
Julian calou-se, consentindo. Ele já sentia seu corpo arder por inteiro; estava banhado em suor. Ele e os demais da família retardavam a transformação o quanto mais se podia nas noites de lua cheia. Mas, depois de muita luta em vão, eram dominados pelo poder que ela possuía sobre eles. Tinha consciência de que seria mais uma noite difícil; mas ao menos naquela noite Melanie estaria salva. Quem o olhasse, naquele instante, concluiria que seu estado era de alguém que estaria com mais de 40 graus. Angelique já tinha presenciado inúmeras transformações de vários membros da família. Mas as de Julian causavam-lhe sensação de desconforto; ele sofria demais por ser um lobisomem e não escondia esse sentimento, nem nessa hora. Sentindo o corpo quase explodindo, ele, num relance, olhou pela janela. E, mais do que a gigante lua que reinava no céu, o rapaz viu aquilo que imediatamente lhe causou um desespero assolador. Sob a luminosidade azul que descia do céu, Julian avistou Marcus e mais quatro membros da família seguindo na direção da estrada que levava até o portão de entrada. Eles iriam sair. Iriam atrás de Melanie.

Melanie estava acuada. Sentia a ameaça, frente a frente, em seu quarto.

- Somos a mais perfeita raça que vive neste mundo. – prosseguiu Camuel – Nós somos vampiros.

A garota recebeu a revelação e sentiu a espinha gelar; ela conhecia as histórias de vampiros. Sabia do que eram capazes. Só não sabia que realmente existiam. Poderia duvidar. Claro, isso seria demais para alguém acreditar; vampiros não existiam. Mas a visão daquele rosto que fixamente a defrontava, num misto de céu e inferno, colocava-a numa situação de xeque.

- Vampiros? – pronunciou Melanie, num tom quase imperceptível.

- É o nome que nos deram.

- Isso não existe. – arriscou ela.

- Era o que eu desejaria que você pensasse se não fosse preciso me revelar. – argumentou Camuel - É muito bom para os negócios que as pessoas pensem assim; que não existimos.

Melanie permaneceu estagnada diante daquele ser singular.

- Olhe novamente para eles. – sugeriu Camuel, apontando para os quatro vampiros – Não são perfeitos? Como não podem existir?

Melanie tornou a olhar na direção dos vampiros do lado de fora. Todos continuavam imóveis, menos o impassível Miguel.

- O que vocês querem comigo? – perguntou ela.

- È bem complicado de explicar. – respondeu pausadamente, enquanto fazia um sinal para os demais – Antes, preciso lhe mostrar algumas coisas.

Os outros vampiros seguiram na direção da entrada da pousada. Miguel entrou por último, olhando para todos os lados da rua, demonstrando preocupação. Melanie desesperou-se.

- Calma! – alertou Camuel, segurando-a – Não vai acontecer nada com eles.

- O que você vai fazer, seu monstro?! – gritou Melanie, socando-lhe o peito, ignorando o perigo que isso poderia lhe acarretar.

- Vou poupar suas vidas. – respondeu Camuel – Não permitirei que ninguém faça mal a você ou a uma dessas pessoas.

A imagem da mãe e do irmão surgia, imediatamente, na mente de Melanie, enquanto ela fechava os olhos. Como poderia confiar naquele que se apresentava como um vampiro, um assassino? No instante em que Melanie sucumbia nos braços de Camuel, um som aterrador ecoou na escuridão. Era aquele mesmo uivo sombrio.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Capítulo Nove – Leve Desespero

Capítulo Nove – Leve Desespero

A lentidão do grandioso portão abrindo-se fez com que Melanie sentisse espasmos por todo o corpo, decorrentes da situação aflitiva a que ela mesma havia se imposto. Se tivesse ficado na pousada, ou então acolhido o conselho da nova amiga, não estaria ali, paralisada, tentando ter um vislumbre do que estava para surgir de dentro da muralha. Incomodada com a situação, a garota olhou para trás, na direção da amiga; ela permanecia no mesmo lugar, e Melanie imaginou que Ariela estaria também quase colocando o coração para fora da boca. Ao retornar sua atenção para o portão, Melanie viu o avantajado Wladmir surgir. Mal encarado, trajava roupas que pareciam de outra época e que deveriam ter sido confeccionadas de modo artesanal. O copioso homem olhava para ela com animosidade.

- O que querer? – disse Wladmir, sem rodeios.

Um amontoado de palavras revirou-se em sua mente, mas com certeza não teria condições momentâneas de responder. Ficou sem reação diante de tal criatura assustadora. O alívio para a voragem de sentimentos que a tomava por completo foi avistar por, detrás das pernas do avolumado homem, a figura mirrada de Julian, que carregava em seu semblante um misto de surpresa e preocupação. Seu desassossego era por ela, Melanie, estar ali e, principalmente, porque todos os familiares sabiam da sua presença.

- O que você está fazendo aqui?! – perguntou Julian, visivelmente nervoso.

- Nossa! Essa parece ser a sua frase favorita.

Melanie lançou ao rapaz um sorriso tímido. Julian permaneceu apreensivo.

- Você me apontou a direção em que morava. Não achei que faria mal vir visitá-lo.

As palavras de Melanie adentravam na mente de Julian, mas este não as absorvia; estava com o pensamento voltado à possibilidade de Agnes chegar a qualquer momento.

- Me desculpe. – lamentou Melanie – Vejo que não foi uma boa ideia ter vindo.

- Tem razão. É melhor você ir embora. - Julian segurou em seu braço quase a forçando a retornar - Depois a gente se fala, e eu lhe explico melhor o que está acontecendo.

Melanie olhou desapontada para Julian enquanto subia na bicicleta. Mais uma vez, sentiu-se profundamente arrependida por ter cometido o erro de tê-lo procurado.

“Que idiota!” - pensou de si mesma. Afinal, não era de fazer esse tipo de tolice.

Nem havia dado tempo de dar a primeira pedalada e, bruscamente, suas ponderações foram interrompidas. Em um salto surpreendente, sobre-humano, Marcus irrompeu de cima do muro e caiu diante da garota.

“Como isso é possível?” - pensou Melanie, completamente aturdida.

Impetuoso, Marcus circulou a garota. Aproximou-se e farejou-a. Melanie tremeu ao sentir o calor do corpo do homem que, agora, estava posicionado bem atrás dela.

- Marcus! Deixe-a em paz. – gritou Julian.

O tio encarou-o com desdém enquanto passava a mão sobre os cabelos de Melanie.

- Já acha que está em condições de dar ordem, lobinho? – Marcus rangeu os dentes, penetrando profundamente em seus olhos – Está pensando que é como seu pai?

Julian cerrou os punhos.

- Você não tem ideia de como as coisas são. – continuou Marcus – Você é tão ingênuo que não consegue perceber o que está diante do seu nariz.

Marcus farejou novamente Melanie; depois, fechou os olhos como se tivesse tomado de um êxtase. Melanie, totalmente imóvel, olhou para Julian e suplicou ajuda. Ele avançou na direção do tio. Marcus deu um sorriso escarnecedor e posicionou-se para receber o seu ataque. Um bramido ecoou em todo o vale: a voz de Agnes.

Quando os lobos foram perseguidos, e lentamente extintos em quase toda a Europa, ao longo dos séculos XVIII e XIX, restou apenas a tenacidade de sobreviver aos que migraram para outros continentes. Esse sentimento fazia-se presente na senhora de longas cãs que se prostrava diante dos seus descendentes. Sua voz interveio com decisão, não só neste, mas em todos os períodos em que comandou a família. Seja como for, na derrota ou no triunfo, Agnes tomava o domínio da situação, e nisso fora extremamente bem-sucedida. Até agora.

- O que pensam que estão fazendo?!

Agnes soltou um brado carregado de amargor. Marcus e Julian retraíram-se e olharam imediatamente na direção da matriarca. Os familiares que seguiam a senhora enfileiram-se junto ao portão. Melanie observava, com o corpo inteiramente rijo, a aproximação da senhora que tinha toda a autoridade na fala. Agnes aproximou-se de Melanie e esquadrinhou-a na íntegra.

- É por isto que estão a ponto de desonrar todos nós? – disse a mulher, apontando para Melanie.

“Que maravilha! Virei “isso” agora!” – pensou Melanie.

Agnes encarou o neto, apontando para os demais que estavam junto ao portão.

- Isso é mais importante que os laços de sangue que você possui, menino?

- Desculpe-me, vó. Mas ela não tem culpa de nada.

Agnes fez uma pausa e demonstrou, visivelmente, que estava no limite. Ela fechou os olhos e parecia querer desfalecer. Wladmir segurou-a; Agnes empurrou o gigante sob os olhos curiosos de todos que ali estavam.

- Não quero sua ajuda, imprestável!

A velha mulher voltou a encarar o neto.

- Nosso instinto... – ela batia no peito – Isso jamais pode mudar. Entendeu?

Julian anuiu com um leve balançar de cabeça.

- A família tem que sobreviver pra você sobreviver. Aqui do lado de fora está o perigo. – Agnes apontou mais uma vez para Melanie – E você já o trouxe para o nosso portão. Quer colocá-la para o lado de dentro também?

Melanie tentou imaginar que perigo poderia proporcionar àquela gente toda. Ela, sim, era uma menina indefesa quase perdendo o pouco de força que ainda a estava mantendo de pé.

- Você tem ideia quem é essa criatura? Quer que os lacaios que a protegem venham bater à nossa porta e começar tudo de novo?

“O que foi isso que a velha senhora quis dizer? Lacaios?” – pensou Melanie, sem entender. “Que lacaios?”

Ela não possuía lacaio algum a protegendo. Possivelmente, a senhora havia se enganado sobre ela, confundindo-a com alguma outra garota da cidade.

- Deixe que venham, mãe! – garganteou Marcus.

- Cale-se, Marcus! – irritou-se Agnes – Você não tem a mínima idéia do que está falando!

- Se vierem, vão ter o que merecem.

- E nós também! Quantos dos nossos irão perecer? - Agnes olhou demoradamente para aqueles que estavam apreensivos junto ao portão - Não quero passar por isso de novo. - a mulher tornou a procurar os olhos do neto - Portanto, mande essa criatura vil desaparecer daqui. - Agnes olhou para Melanie - Não sei o que você está fazendo na nossa cidade, mas nunca mais ponha os pés aqui. Nunca mais.

A matriarca fez sinal para que Marcus a acompanhasse. Agnes, seguida do filho e de Wladmir, seguiu em direção à fazenda. Julian e Melanie permaneceram paralisados. A garota não conseguia entender o porquê de sua presença causar tanto furor na senhora. A velha parou junto ao portão e, sem se virar, exclamou:

- Julian! Venha, agora!

Agnes retomou a caminhada e foi seguida pelos demais. Julian olhou pesaroso para Melanie; ele não conseguia pronunciar palavra alguma. Na verdade, palavra nenhuma teria algum sentido agora. Ele tinha a convicção de que nada amenizaria o que Melanie estaria sentindo; deve ter sido demais para ela tudo que acontecera. Julian fez meia-volta e seguiu, passando pelo portão. A garota, recém-chegada à cidade, jamais imaginou que passaria por algo assim. Muitos acontecimentos e atitudes não faziam sentido. Situação insólita que a deixava sem reação alguma. Apenas tinha uma certeza: a de que, naquele momento, um pesado portão fechava-se diante de seus olhos.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Capítulo Oito – A Fazenda.

Capítulo Oito – A Fazenda.

Quando os primeiros raios de sol elevaram-se no céu, Julian acordava, no mesmo lugar de sempre. Mas não era uma manhã como as outras. Uma pequena fenda entre as rochas era a entrada de um salão esculpido com maestria dentro do monte. Monte Seco. Os mais antigos, incluindo os da família, diziam que, quando chovia, o local era cercado pela chuva que nunca o atingia. O ar que procedia da chuva apenas conseguia regá-lo. Segundo os mais antigos que os antigos, o lugar era místico, ou pior ainda, amaldiçoado. Daí surgiu o nome pelo qual a cidade era conhecida. Mas Julian não se importava com os comentários, pois este sempre fora o local que escolhera para acordar quando as noites que aprendeu a detestar aconteciam. Ele, melhor do que ninguém, sabia o que era sentir-se amaldiçoado. Era seguro e trazia-lhe paz de espírito. Brincava ali, solitário, naquela caverna quando menino. Seus segredos estavam guardados naquele lugar. Os segredos que ele mantinha afastado das pessoas da cidade e, principalmente, das da família.
Enquanto caminhava de volta para casa, Julian remoía os acontecimentos da noite anterior. O rosto aterrorizado da menina de cabelos longos e olhos castanhos era uma imagem fixa na sua mente. O que ela estava fazendo na praça àquela hora? Ninguém saía às ruas; ninguém. De longe avistou Wladmir, aquele que o seguia por quase toda a parte, mas, principalmente, nas noites como as da véspera; por ordem do pai e, consequentemente, da avó, depois que este falecera. Julian sabia que Wladmir, o russo de dois metros e dezoito centímetros de altura, ficava furioso quando o perdia de vista. Fora privilegiado com a altura excessiva, mas sua capacidade de raciocinar não acompanhava esse dom. Tanto no país de origem como no Brasil, o russo conseguia atrair olhares curiosos e comentários carregados de maldade. Por essa razão, raras vezes saía da fazenda. E, sempre que o fazia, era para seguir o neto da mulher que agora o abrigava.
Wladmir havia seguido Julian, mantendo-se afastado, na tarde em que ele conversou com Melanie. Viu o rapaz iniciar a conversa com a estranha. Ninguém da família aprovaria. Mas não foi só isso que o deixou preocupado. O russo não compreendia o porquê de Julian ter ido na véspera, à noite, à cidade e, justamente, em hora imprópria. Na hora da dor. E pior, esteve com a mesma garota novamente. Julian pensou em escapar. Sabia que o russo não conseguiria alcançá-lo se assim desejasse. Mas Wladmir já deveria estar furioso o suficiente. Não queria mais irritá-lo. Então, esperou.

- Garoto mau. Por que fugiu de Wladmir? - esbravejou rudemente o russo, cuspindo saliva sobre Julian.

Wladmir possuía uma voz firme que ainda carregava um forte sotaque.

- Calma, Gigante. Eu precisei sair.

O russo amenizou a expressão do rosto. Destoando de sua aparência assustadora, o gigante tratava os da família com candura, principalmente Julian que, mais do que um protegido, passou a considerá-lo como um irmão caçula.

- Perigoso sair. – continuou Wladmir.

- Eu sei, Gigante. - concordou Julian.

- Ninguém pode saber que você conversar com garota estranha.

- Foi por isso que saí. Ela corria perigo. Você sabe.

- Wladmir entende. Família não.

- Eu não poderia deixar nada acontecer a ela. E você sabe muito bem, Gigante, o que aconteceria se eu não fosse até ela.

O russo meneou a cabeça e apontou na direção da fazenda. Julian compreendeu o pensamento do gigante.

- Wladmir não gostar do que garoto fez.

- Nem eu, Gigante. Nem eu.

Os dois seguiram, juntos, pelo descampado.

Alguém, vendo pela primeira vez a movimentação realizada na fazenda, poderia imaginar que aquela família que ali residia era normal, como tantas outras no interior deste país. Mas ela possuía um diferencial. Mais do que esconder, seus integrantes tinham que conviver com os segredos que os uniam. Eram amantes de Luna.
A matriarca, Agnes, carregava sobre si a responsabilidade de manter os acontecimentos dentro dos muros que cercavam a fazenda. Era uma mulher idosa, mas ninguém saberia dizer, ao certo, de quantos anos. Talvez nem ela mesma recordasse. O que se dizia a seu respeito era que já pusera os pés em grande parte do globo terrestre. Inclusive na Rússia, de onde seu filho primogênito Cássius trouxera Wladmir, ainda jovem. Morou em boa parte dos países nórdicos e até no continente asiático passou, antes de aportar na terra que a acolheu definitivamente. Quando seu marido, ferido mortalmente por um inimigo na Grande Batalha, incumbiu-a de chefiar a família, Agnes trouxe os sobreviventes para Monte Seco e, com muita dificuldade, fundou a fazenda que agora ocupavam. Nascida no seio de uma família de poderosos licantropos, em um vilarejo próximo a Via dos Lobos, essa senhora europeia carregava o indelével sentimento da vingança contra os nefastos e antigos inimigos.
Quando Julian, seguido por Wladmir, adentrou o pátio defronte à casa principal, os familiares paralisaram seus afazeres para acompanharem a incursão do jovem rapaz até onde estava a anciã, que já o aguardava na área de entrada. Ele percebeu que, naquele dia, não ouviria somente um dos velhos e conhecidos sermões da avó. Algo mais iria acontecer, já que a curiosidade instaurada pela sua chegada não o deixava com dúvidas. Julian diminuiu o passo com a intenção de obter mais tempo para pensar em algo que o auxiliasse a convencer a avó sobre suas atitudes. Wladmir empurrou-o, tentando demonstrar a todos que não compactuava com ele. O russo também tremia com medo de que a senhora mandassem-no verberar. Julian, temeroso, parou em frente à grande casa. Rústica, alta, sem pintura e com trepadeiras que quase alcançavam os beirais. Fora erguida com o esforço dos primeiros que ali se instalaram. Agnes saiu da imensa área frontal, desceu o degrau e seguiu até onde o neto permanecia parado, olhando para o chão.

- Você sabe o que fez? – perguntou Agnes.

- Sim, eu sei...

Julian nem terminou a frase e sentiu a mão da avó golpear-lhe a face. Não saberia mensurar quanta força aquele braço inválido pelo tempo possuía. Revirou-se e quase foi ao chão. Depois, tentou se recompor. Olhou para frente novamente e sentiu um espasmo de ódio quando viu surgir por detrás da avó a figura do tio. Marcus ostentava um sorriso sarcástico direcionado ao sobrinho. Julian lembrou que fora ele, o tio, a razão de ter que sair da fazenda para socorrer a garota.

- Calma, minha mãe. – sugeriu Marcus, abraçando a mulher – A senhora não tem mais idade pra essas coisas.

- Calma? É isso que me sugere? – Agnes afastou o braço de Marcus - Eu tenho tentado proteger esta família há muito tempo. Já passei por muita coisa que vocês nem podem imaginar. Não vou deixar que as coisas acabem assim.

- Eu sempre lhe digo... O castigo é a melhor solução para esse lobinho.

Julian fulminou o tio com o olhar. Marcus sempre o menosprezara. Cassius, o seu pai, esse, sim, ele temeu. Talvez essa fosse a razão de descontar tanto no sobrinho. Na sua mente, Julian voltou a visualizar o rosto congestionado da garota, quase desfalecia em seus braços. Se não estivesse lá, naquele momento, Marcus não a deixaria viver.

- Quieto, Marcus! – irritou-se ainda mais a velha senhora – Deixe que eu resolvo.

Marcus lançou outro sorriso repleto de sarcasmo na direção do sobrinho. Ele também sabia que Julian fora quem interveio em seu ataque.

- Quantas vezes eu falei para você que está proibido de sair destes muros nas noites de Luna?! Você entendeu?

Julian assentiu com a cabeça.

- Você! – ela apontou para Wladmir – Resolvo com você depois.

Wladmir abaixou a cabeça em submissão. Agnes deu meia-volta e entrou na casa, sendo seguida por Marcus. Simultaneamente, cada um dos familiares retornou às tarefas que executavam antes da chegada de Julian. Wladmir, com os olhos receosos, andava de um lado para o outro, falando em russo, totalmente sem rumo. Julian tinha o entendimento de que a avó realmente possuía toda a razão em chamar sua atenção, a sua decisão de expor-se fora arriscada. Mas também tinha absoluta certeza de que salvar a vida da garota foi o certo a fazer.
Ninguém transpassava aquela muralha. Poucas, muito poucas pessoas, que não eram familiares, podiam entrar. Na verdade, ninguém da cidade ousava aproximar-se do local, desde que se ergueram os muros, e estes novos moradores vieram morar ali. Humano nenhum era bem-vindo, quanto mais se pertencesse à raça odiosa dos inimigos.
Era o meio da tarde daquele dia, e Julian já havia suposto que a situação voltava a normalizar. Foi quando uma voz proveniente do lado de fora clamou pelo seu nome, tirando, definitivamente, a paz do lugar.