segunda-feira, 2 de março de 2009

Os Segredos de uma Noite

Queridos!!!

Os dez primeiros capítulos estão revisados para o livro e já os postei aqui também. Algumas pequenas modificações foram feitas para publicação. Em breve passarei a data de lançamento do livro pela Editora Multifoco do RJ.

http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=53144736 - Comunidade de Segredos de uma Noite.

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"Alguém, certa vez, falou que em cidade pequena não existem segredos. Esse alguém, certamente, jamais passou por Monte Seco... Eu passei."

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Capítulo Dez – Eu Contra a Noite.

Capítulo Dez – Eu Contra a Noite.

Seu rosto ainda permanecia contraído, talvez pela tensão dos momentos que acabara de sentir, algumas horas atrás. Melanie permanecia sentada, completamente absorta, no sofá, em frente à velha TV; as imagens indefinidas passavam diante de seus olhos, mas a garota não as captava. Concentrava-se em sua mente, tentado esmiuçar cada pequeno instante vivido. Flavia estava ali bem ao seu lado e, já há alguns instantes, percebera que algo não estava de acordo.

- Tudo bem com você, Mel?

Melanie, lentamente, voltou à cabeça na direção da mãe.

- Tudo. - respondeu automaticamente, voltando a olhar à tela da TV.

Mas Flavia, como toda mãe, que sabe reconhecer quando algo não vai bem com o filho, insistiu.

- Tem certeza? Você pode falar comigo.

- Está tudo bem, mãe. – respondeu ela, ainda olhando para a TV – Pode ficar tranquila.

- Eu entendo que esses dias não estão sendo fáceis pra você. Por isso, se quiser conversar comigo sobre alguma coisa, eu estou aqui. Ok?

Melanie pensou que, de repente, a mãe estaria sabendo de algum daqueles acontecimentos. Quem sabe seria correto perguntar sua opinião? Mas o que Flávia acharia se, de uma hora para outra, contasse os momentos tensos por que passou? Melanie considerou melhor não falar nada; já bastava ela estar enlouquecendo com tudo isso.
Dona Carmélia adentrou a sala.

- Querem jantar agora, meninas?

Flavia levantou-se e estendeu a mão na direção da filha.

- Vamos, querida?

- Não, mãe. – respondeu Melanie – Estou sem fome.

- Quer que eu traga?

- Obrigada, mãe. Não estou a fim mesmo.

Dona Carmélia aproximou-se de Flávia e segurou-a pelo braço.

- Venha você. – falou a bondosa senhora - Se ela sentir fome depois, você prepara alguma coisa para ela.

Preocupada, Flavia olhou para a filha que permanecia imóvel; tinha mais do que certeza de que não adiantaria querer forçar alguma atitude ou reação com a filha. Ela iria comer sim, mas quando sentisse vontade.
Era hora do jantar. Melanie sabia que, logo na sequência, viriam as longas horas de novela após novela, e ela poderia, enfim, ter um tempinho só para ela. Esperou alguns minutos depois que todos foram para cozinha e seguiu para o quarto. Deitada na cama, olhando para os nós do teto de madeira, Melanie reviveu, em sua mente, momentos cruciais dos eventos da tarde daquele dia. Recordava o homem, de quem não conseguia lembrar o nome, pois a velha o tinha dito só num determinado momento. O que ele estaria disposto a fazer com ela? Como pôde ter se lançado daquele jeito no ar? Foi um salto impossível para um humano. Estava ela a certa distância do muro, e ele, aterrissou bem na sua frente.
E Julian? Por que a tratou daquele jeito depois de ter sido tão gentil? Por que esse rapaz causava-lhe uma atração tão forte? Nutria esse sentimento tão inusitado por uma pessoa que acabara de conhecer. Ela mal o conhecia e, ainda assim, sentia a necessidade de saber mais sobre ele. E o lugar em que ele morava? Nossa! Que lugar estranho. Parecia uma fortaleza. O que aquelas pessoas teriam para esconder?

- Todos nós temos coisas a esconder.

Ela olhou na direção de onde a voz fazia-se ouvir. Uma voz firme, com leve sotaque, que ela não conseguiu identificar ser originário de qual país. Melanie estremeceu, havia alguém sentado na cadeira, no canto do quarto. Era alguém trajando um caro terno preto. Pernas elegantemente cruzadas. Oculto pela penumbra, não deixando à mostra o rosto. Parecia um déjà vu. Ela lembrou-se, quase que imediatamente da situação semelhante que vivera quando teve seu quarto invadido, em Londrina. Nesse instante, foi tomada pela mesma sensação a que estava acostumando-se a sentir. As luzes, agora, estavam ainda mais fortes, ofuscando a sua visão. Os sons de um campo de batalha penetravam na mente da garota. Ela ouvia as espadas, os gritos e os urros de dor daqueles que recebiam seus golpes mortais e, nitidamente, como se estivessem acontecendo ali, naquele instante. Era ensurdecedor!

- Não tem por que ficar com medo de mim. Não irei lhe fazer mal. Eu prometo.

Tarde demais. Melanie sentia-se aterrorizada. Desde que foram para aquela cidade, muitas situações fora do comum estavam acontecendo a ela. Agora isso; um estranho dentro do seu quarto, novamente, depois de tantos anos, prometendo que não lhe faria mal. Mas Melanie já estava sentindo-se mal. Muito mal.

- Melanie, – O estranho continuou - doce Melanie. Quer saber quem eu sou?

Ela, instintivamente, sentiu vontade de gritar, de sair correndo, desesperada. Mas apenas conseguiu consentir com um leve balançar de cabeça.

As últimas horas foram intensamente difíceis. Tanto que Julian limitou-se a pronunciar poucas palavras. Todos que passavam por ele encaravam-no, deixando transparecer o que estavam pensando a seu respeito. Sem nada mencionarem, queriam que ele compreendesse que suas ações inconsequentes foram desaprovadas por todos da família. Há muito tempo viviam em tranquilidade. Não estavam mais acostumados a lutarem pela sobrevivência. Quando sentiam a sede sobre o brilho de Luna, eram saciados pelas mulheres e serviçais; os poucos, assim como Wladmir, que viviam no seu meio.
Era uma casta diferenciada; podia transformar-se em qualquer noite se preciso fosse. Isso foi útil antes desse tempo, quando viviam em guerra com os odiosos. Nos dias atuais, apenas se sujeitavam à poderosa lua cheia que, inevitavelmente, traz todo o furor da maldição. A única escolha que podiam ter era esconderem-se do lado de dentro da grande muralha e permanecerem aos cuidados atentos dos guardiões. Raras eram as mulheres da família que se transformavam. Devido a isso, podiam se manter longe das correntes. Os homens não tinham essa alternativa.
Cassius, filho primogênito de Agnes, era detentor de duas grandes virtudes. Fora um guerreiro louvável, cultuado pelos seus e temido pelos inimigos. Era também um estudioso de grande talento, capaz de conduzir os experimentos que causaram a mutação benéfica nos membros da família. Sua utopia era a de descobrir uma cura, um livramento para todos. Estava prestes a conseguir algum resultado quando, em uma emboscada, fora atacado por um grupo de inimigos e aniquilado. Ninguém ainda conseguia entender o que realmente acontecera. Cassius não era de facilitar ao ponto de ser apanhado. Desde então, os cuidados com os membros do clã foram redobrados.
Julian sentia na pele o peso de ser filho de Cassius. Todos almejavam que ele fosse como o pai, mas o rapaz era diferente; não se sentia atraído pelas atividades ou ações que fizeram do pai uma lenda. Ele não desejava seguir esse caminho. Queria ser um jovem normal. Não queria ser uma lenda.

Angelique entrou no quarto de Julian e aproximou-se do primo. Ele estava atado às correntes.

- Não vai ficar com os outros? – disse ela, ao entrar.

- Não sou uma boa companhia pra ninguém hoje. Inclusive pra você. – respondeu, cabisbaixo.

- Que pena. Porque recebi a missão de ficar do seu lado.

- Era só o que estava faltando! Trocaram você pelo Gigante.

- Isso aí. O monstrão vai ter que ficar lá no alojamento.

Julian recostou a cabeça na parede e, da janela, olhou para o céu estrelado. A noite estava chegando. E a dor também.

O tremor das mãos de Melanie, apertando com força o cobertor, fez o estranho que invadira o seu quarto repetir a pergunta.

- Então, Melanie. Quer saber quem eu sou?

Melanie repetiu o mesmo gesto, autorizando-o a apresentar-se. No momento, ela sentia-se impossibilitada de pronunciar qualquer palavra. O homem compreendeu sua condição e inclinou-se para frente, revelando a sua face.

- Eu sou Camuel.

Incrível. Melanie não saberia descrever o que acabava de sentir. Era o belo estranho, o mesmo que a observava do lado de fora na noite anterior. Os mesmos cabelos hirtos iluminados pelo clarão azul da lua. Mas algo estava diferente. Desprovido de um relance de vida, o único tom de cor que se destacava em seu rosto eram as linhas avermelhadas das veias que sobressaíam debaixo da pele alva. Muito alva. O vampiro era como um busto de gesso, na cor e na frieza dos olhos. Mas, ainda sim, tinha os traços perfeitos, angelicais.

- Agora quer saber por que estou aqui?

O medo da garota estava chegando ao limite. Ela sentia que um grito de terror sairia de sua garganta a qualquer momento. O vampiro também pressentiu. Com um gesto suave, deslizou o braço pelo ar na direção de Melanie e depositou seu dedo nos lábios da garota, silenciando-a.

- Só não pode fazer isso. Eu já lhe falei; não vou lhe fazer mal.

Melanie fechou os olhos e iniciou um choro contido. Camuel, calmamente, retirou o dedo dos lábios da menina e passou sobre o seu rosto, estancando a lágrima que caía.

- Vou precisar repetir a mesma pergunta pra você a noite toda?

Melanie, timidamente, olhou nos olhos de Camuel; eram azuis brilhantes que contrastavam com a pele infinitamente branca. Olhos gélidos e vazios. Ele fez surgir em suas mãos, como em um passe de mágica, uma linda rosa vermelha. O vampiro ofereceu-a, e Melanie segurou-a com as mãos trêmulas.

- Então, vou lhe dizer por que estou aqui, Melanie.

A garota concordou.

- Primeiramente, quero que você olhe pela janela.

Mel não conseguia compreender a intenção do rapaz que estava à sua frente. Por que ele queria que ela olhasse pela janela?

- Por favor, – pediu Camuel, com extrema gentileza – olhe pela janela.

A garota, bastante nervosa e ainda tremendo muito, seguiu cuidadosa na direção da janela. Sem olhar para Camuel, ela depositou os olhos na direção da rua e viu-os parados. Eram quatro no total, iluminados pela mesma lua azul. Enfileirados, dois homens e duas mulheres. Chamavam a atenção pelas roupas que vestiam. Elegantes. Todos muito bonitos. Incrivelmente radiantes.

- São a mais pura criação da natureza. – disse Camuel, enquanto se aproximou por trás de Melanie, segurando-lhe os braços – Não existe nada igual a eles. São o ápice de tudo que existe. São eternos.

O primeiro deles, Iori, o mais alto, era negro, natural de Moçambique. Não possuía pelo algum sobre todo o corpo. Usava um sobretudo cinza-escuro e, por baixo, uma camisa branca de tecido fino. Tinha a cor do que mais adorava nos olhos; a cor do sangue. A mulher que estava ao seu lado era Charlotte. Alta, loira, francesa de olhos azuis cintilantes, cabelos que ostentavam uma longa trança que quase alcançava a altura dos joelhos. Um vestido prateado, que deixava seu colo feminil à vista, cobria o restante do corpo esguio. Estava adornada com um colar que carregava um medalhão, com o símbolo da Casa a qual pertencia. A outra mulher, um pouco mais jovem do que a primeira, era Rania. Uma morena húngara, de estatura mediana e corpo escultural. Os cabelos negros e encaracolados lembravam muito os de Ariela. Vestia um corselet branco debaixo de um sobretudo de camurça. Colada ao corpo, uma calça de couro preta, como a cor dos seus olhos. Também tinha em seu peito um medalhão. O último dos vampiros era Miguel. Nome de arcanjo, mas coração de demônio. Franzino, tinha os cabelos desgrenhados em um corte moderno. Ele usava os trajes brancos, destoando dos demais. Americano de descendência latina, parecia o mais irrequieto; no período em que Melanie observava-os da janela, ele revolvia-se de um lado para o outro, enquanto os demais continuavam imóveis. Camuel percebeu a movimentação desordenada do vampiro menor.

- O que foi, Miguel? Preocupado?

Os outros vampiros, enfim, realizaram um movimento. Como se sincronizados, olharam na direção de Miguel. O vampiro de branco saltou da rua em direção à casa. Novamente Melanie observou uma ação fora do comum. Parecia que estava em um sonho louco. Miguel aterrissou sob a janela de Melanie, colocando suavemente seus pés sobre o peitoril.

- Eu avisei, Camuel; não era uma boa ideia termos vindo.

Camuel sorriu, ignorando o alerta recebido de Miguel.

- Nem sempre suas premonições condizem com a verdade, irmão.

- Está avisado novamente, irmão.

A ênfase na palavra “irmão” denunciou a ironia com que Miguel considerou a opinião de Camuel. Contrariado, impulsionou-se para trás e, num salto fenomenal, caiu ao lado dos outros três. Camuel voltou toda a sua atenção para Melanie.

- Agora você precisa saber o que realmente nós somos.

Por diversas vezes, Julian pegou-se pensando no quanto pessoas do mesmo sangue podem ser tão diferentes. Quando ele olhava para Angelique, não via nela nada que lembrasse o pai desprezível que a jovem tinha. A prima compactuava com ele em pensamentos e, muitas vezes, em ações. Ela também considerava que essa rixa antiga, iniciada há muitos séculos, e que persistia até aquele momento, deveria acabar. A longa trégua que mantinham as duas raças poderia ser eterna. Mas Marcus jamais permitiria que sua própria filha alarmasse suas ideias. Então, viviam os dois, Julian e Angelique, conforme as regras da família, mas tinham, no seu íntimo, outros desígnios.

- Me fale a verdade; por que você saiu escondido, daquele jeito, ontem à noite? – perguntou Angelique.

- Era preciso. – respondeu Julian – Tinha uma coisa que eu precisava fazer.

- Óbvio que sim. Senão você não sairia quebrando as regras.

- Não fui só eu que as quebrei.

- Eu sei. As regras servem somente para nós: os jovens.

Julian soltou um gemido. A hora da transformação estava chegando. Angelique aproximou-se da janela e olhou para o céu.

- Lua azul de novo. – exclamou a garota.

- Por isso saí ontem... – completou Julian com dificuldade.

- Claro! Nas luas azuis, você tem visões. – debochou Angelique.

- Não foi visão. Foi instinto.

- E teve alguma coisa a ver com aquela esquisitinha que esteve aqui, hoje à tarde, não é?
Julian calou-se, consentindo. Ele já sentia seu corpo arder por inteiro; estava banhado em suor. Ele e os demais da família retardavam a transformação o quanto mais se podia nas noites de lua cheia. Mas, depois de muita luta em vão, eram dominados pelo poder que ela possuía sobre eles. Tinha consciência de que seria mais uma noite difícil; mas ao menos naquela noite Melanie estaria salva. Quem o olhasse, naquele instante, concluiria que seu estado era de alguém que estaria com mais de 40 graus. Angelique já tinha presenciado inúmeras transformações de vários membros da família. Mas as de Julian causavam-lhe sensação de desconforto; ele sofria demais por ser um lobisomem e não escondia esse sentimento, nem nessa hora. Sentindo o corpo quase explodindo, ele, num relance, olhou pela janela. E, mais do que a gigante lua que reinava no céu, o rapaz viu aquilo que imediatamente lhe causou um desespero assolador. Sob a luminosidade azul que descia do céu, Julian avistou Marcus e mais quatro membros da família seguindo na direção da estrada que levava até o portão de entrada. Eles iriam sair. Iriam atrás de Melanie.

Melanie estava acuada. Sentia a ameaça, frente a frente, em seu quarto.

- Somos a mais perfeita raça que vive neste mundo. – prosseguiu Camuel – Nós somos vampiros.

A garota recebeu a revelação e sentiu a espinha gelar; ela conhecia as histórias de vampiros. Sabia do que eram capazes. Só não sabia que realmente existiam. Poderia duvidar. Claro, isso seria demais para alguém acreditar; vampiros não existiam. Mas a visão daquele rosto que fixamente a defrontava, num misto de céu e inferno, colocava-a numa situação de xeque.

- Vampiros? – pronunciou Melanie, num tom quase imperceptível.

- É o nome que nos deram.

- Isso não existe. – arriscou ela.

- Era o que eu desejaria que você pensasse se não fosse preciso me revelar. – argumentou Camuel - É muito bom para os negócios que as pessoas pensem assim; que não existimos.

Melanie permaneceu estagnada diante daquele ser singular.

- Olhe novamente para eles. – sugeriu Camuel, apontando para os quatro vampiros – Não são perfeitos? Como não podem existir?

Melanie tornou a olhar na direção dos vampiros do lado de fora. Todos continuavam imóveis, menos o impassível Miguel.

- O que vocês querem comigo? – perguntou ela.

- È bem complicado de explicar. – respondeu pausadamente, enquanto fazia um sinal para os demais – Antes, preciso lhe mostrar algumas coisas.

Os outros vampiros seguiram na direção da entrada da pousada. Miguel entrou por último, olhando para todos os lados da rua, demonstrando preocupação. Melanie desesperou-se.

- Calma! – alertou Camuel, segurando-a – Não vai acontecer nada com eles.

- O que você vai fazer, seu monstro?! – gritou Melanie, socando-lhe o peito, ignorando o perigo que isso poderia lhe acarretar.

- Vou poupar suas vidas. – respondeu Camuel – Não permitirei que ninguém faça mal a você ou a uma dessas pessoas.

A imagem da mãe e do irmão surgia, imediatamente, na mente de Melanie, enquanto ela fechava os olhos. Como poderia confiar naquele que se apresentava como um vampiro, um assassino? No instante em que Melanie sucumbia nos braços de Camuel, um som aterrador ecoou na escuridão. Era aquele mesmo uivo sombrio.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Capítulo Nove – Leve Desespero

Capítulo Nove – Leve Desespero

A lentidão do grandioso portão abrindo-se fez com que Melanie sentisse espasmos por todo o corpo, decorrentes da situação aflitiva a que ela mesma havia se imposto. Se tivesse ficado na pousada, ou então acolhido o conselho da nova amiga, não estaria ali, paralisada, tentando ter um vislumbre do que estava para surgir de dentro da muralha. Incomodada com a situação, a garota olhou para trás, na direção da amiga; ela permanecia no mesmo lugar, e Melanie imaginou que Ariela estaria também quase colocando o coração para fora da boca. Ao retornar sua atenção para o portão, Melanie viu o avantajado Wladmir surgir. Mal encarado, trajava roupas que pareciam de outra época e que deveriam ter sido confeccionadas de modo artesanal. O copioso homem olhava para ela com animosidade.

- O que querer? – disse Wladmir, sem rodeios.

Um amontoado de palavras revirou-se em sua mente, mas com certeza não teria condições momentâneas de responder. Ficou sem reação diante de tal criatura assustadora. O alívio para a voragem de sentimentos que a tomava por completo foi avistar por, detrás das pernas do avolumado homem, a figura mirrada de Julian, que carregava em seu semblante um misto de surpresa e preocupação. Seu desassossego era por ela, Melanie, estar ali e, principalmente, porque todos os familiares sabiam da sua presença.

- O que você está fazendo aqui?! – perguntou Julian, visivelmente nervoso.

- Nossa! Essa parece ser a sua frase favorita.

Melanie lançou ao rapaz um sorriso tímido. Julian permaneceu apreensivo.

- Você me apontou a direção em que morava. Não achei que faria mal vir visitá-lo.

As palavras de Melanie adentravam na mente de Julian, mas este não as absorvia; estava com o pensamento voltado à possibilidade de Agnes chegar a qualquer momento.

- Me desculpe. – lamentou Melanie – Vejo que não foi uma boa ideia ter vindo.

- Tem razão. É melhor você ir embora. - Julian segurou em seu braço quase a forçando a retornar - Depois a gente se fala, e eu lhe explico melhor o que está acontecendo.

Melanie olhou desapontada para Julian enquanto subia na bicicleta. Mais uma vez, sentiu-se profundamente arrependida por ter cometido o erro de tê-lo procurado.

“Que idiota!” - pensou de si mesma. Afinal, não era de fazer esse tipo de tolice.

Nem havia dado tempo de dar a primeira pedalada e, bruscamente, suas ponderações foram interrompidas. Em um salto surpreendente, sobre-humano, Marcus irrompeu de cima do muro e caiu diante da garota.

“Como isso é possível?” - pensou Melanie, completamente aturdida.

Impetuoso, Marcus circulou a garota. Aproximou-se e farejou-a. Melanie tremeu ao sentir o calor do corpo do homem que, agora, estava posicionado bem atrás dela.

- Marcus! Deixe-a em paz. – gritou Julian.

O tio encarou-o com desdém enquanto passava a mão sobre os cabelos de Melanie.

- Já acha que está em condições de dar ordem, lobinho? – Marcus rangeu os dentes, penetrando profundamente em seus olhos – Está pensando que é como seu pai?

Julian cerrou os punhos.

- Você não tem ideia de como as coisas são. – continuou Marcus – Você é tão ingênuo que não consegue perceber o que está diante do seu nariz.

Marcus farejou novamente Melanie; depois, fechou os olhos como se tivesse tomado de um êxtase. Melanie, totalmente imóvel, olhou para Julian e suplicou ajuda. Ele avançou na direção do tio. Marcus deu um sorriso escarnecedor e posicionou-se para receber o seu ataque. Um bramido ecoou em todo o vale: a voz de Agnes.

Quando os lobos foram perseguidos, e lentamente extintos em quase toda a Europa, ao longo dos séculos XVIII e XIX, restou apenas a tenacidade de sobreviver aos que migraram para outros continentes. Esse sentimento fazia-se presente na senhora de longas cãs que se prostrava diante dos seus descendentes. Sua voz interveio com decisão, não só neste, mas em todos os períodos em que comandou a família. Seja como for, na derrota ou no triunfo, Agnes tomava o domínio da situação, e nisso fora extremamente bem-sucedida. Até agora.

- O que pensam que estão fazendo?!

Agnes soltou um brado carregado de amargor. Marcus e Julian retraíram-se e olharam imediatamente na direção da matriarca. Os familiares que seguiam a senhora enfileiram-se junto ao portão. Melanie observava, com o corpo inteiramente rijo, a aproximação da senhora que tinha toda a autoridade na fala. Agnes aproximou-se de Melanie e esquadrinhou-a na íntegra.

- É por isto que estão a ponto de desonrar todos nós? – disse a mulher, apontando para Melanie.

“Que maravilha! Virei “isso” agora!” – pensou Melanie.

Agnes encarou o neto, apontando para os demais que estavam junto ao portão.

- Isso é mais importante que os laços de sangue que você possui, menino?

- Desculpe-me, vó. Mas ela não tem culpa de nada.

Agnes fez uma pausa e demonstrou, visivelmente, que estava no limite. Ela fechou os olhos e parecia querer desfalecer. Wladmir segurou-a; Agnes empurrou o gigante sob os olhos curiosos de todos que ali estavam.

- Não quero sua ajuda, imprestável!

A velha mulher voltou a encarar o neto.

- Nosso instinto... – ela batia no peito – Isso jamais pode mudar. Entendeu?

Julian anuiu com um leve balançar de cabeça.

- A família tem que sobreviver pra você sobreviver. Aqui do lado de fora está o perigo. – Agnes apontou mais uma vez para Melanie – E você já o trouxe para o nosso portão. Quer colocá-la para o lado de dentro também?

Melanie tentou imaginar que perigo poderia proporcionar àquela gente toda. Ela, sim, era uma menina indefesa quase perdendo o pouco de força que ainda a estava mantendo de pé.

- Você tem ideia quem é essa criatura? Quer que os lacaios que a protegem venham bater à nossa porta e começar tudo de novo?

“O que foi isso que a velha senhora quis dizer? Lacaios?” – pensou Melanie, sem entender. “Que lacaios?”

Ela não possuía lacaio algum a protegendo. Possivelmente, a senhora havia se enganado sobre ela, confundindo-a com alguma outra garota da cidade.

- Deixe que venham, mãe! – garganteou Marcus.

- Cale-se, Marcus! – irritou-se Agnes – Você não tem a mínima idéia do que está falando!

- Se vierem, vão ter o que merecem.

- E nós também! Quantos dos nossos irão perecer? - Agnes olhou demoradamente para aqueles que estavam apreensivos junto ao portão - Não quero passar por isso de novo. - a mulher tornou a procurar os olhos do neto - Portanto, mande essa criatura vil desaparecer daqui. - Agnes olhou para Melanie - Não sei o que você está fazendo na nossa cidade, mas nunca mais ponha os pés aqui. Nunca mais.

A matriarca fez sinal para que Marcus a acompanhasse. Agnes, seguida do filho e de Wladmir, seguiu em direção à fazenda. Julian e Melanie permaneceram paralisados. A garota não conseguia entender o porquê de sua presença causar tanto furor na senhora. A velha parou junto ao portão e, sem se virar, exclamou:

- Julian! Venha, agora!

Agnes retomou a caminhada e foi seguida pelos demais. Julian olhou pesaroso para Melanie; ele não conseguia pronunciar palavra alguma. Na verdade, palavra nenhuma teria algum sentido agora. Ele tinha a convicção de que nada amenizaria o que Melanie estaria sentindo; deve ter sido demais para ela tudo que acontecera. Julian fez meia-volta e seguiu, passando pelo portão. A garota, recém-chegada à cidade, jamais imaginou que passaria por algo assim. Muitos acontecimentos e atitudes não faziam sentido. Situação insólita que a deixava sem reação alguma. Apenas tinha uma certeza: a de que, naquele momento, um pesado portão fechava-se diante de seus olhos.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Capítulo Oito – A Fazenda.

Capítulo Oito – A Fazenda.

Quando os primeiros raios de sol elevaram-se no céu, Julian acordava, no mesmo lugar de sempre. Mas não era uma manhã como as outras. Uma pequena fenda entre as rochas era a entrada de um salão esculpido com maestria dentro do monte. Monte Seco. Os mais antigos, incluindo os da família, diziam que, quando chovia, o local era cercado pela chuva que nunca o atingia. O ar que procedia da chuva apenas conseguia regá-lo. Segundo os mais antigos que os antigos, o lugar era místico, ou pior ainda, amaldiçoado. Daí surgiu o nome pelo qual a cidade era conhecida. Mas Julian não se importava com os comentários, pois este sempre fora o local que escolhera para acordar quando as noites que aprendeu a detestar aconteciam. Ele, melhor do que ninguém, sabia o que era sentir-se amaldiçoado. Era seguro e trazia-lhe paz de espírito. Brincava ali, solitário, naquela caverna quando menino. Seus segredos estavam guardados naquele lugar. Os segredos que ele mantinha afastado das pessoas da cidade e, principalmente, das da família.
Enquanto caminhava de volta para casa, Julian remoía os acontecimentos da noite anterior. O rosto aterrorizado da menina de cabelos longos e olhos castanhos era uma imagem fixa na sua mente. O que ela estava fazendo na praça àquela hora? Ninguém saía às ruas; ninguém. De longe avistou Wladmir, aquele que o seguia por quase toda a parte, mas, principalmente, nas noites como as da véspera; por ordem do pai e, consequentemente, da avó, depois que este falecera. Julian sabia que Wladmir, o russo de dois metros e dezoito centímetros de altura, ficava furioso quando o perdia de vista. Fora privilegiado com a altura excessiva, mas sua capacidade de raciocinar não acompanhava esse dom. Tanto no país de origem como no Brasil, o russo conseguia atrair olhares curiosos e comentários carregados de maldade. Por essa razão, raras vezes saía da fazenda. E, sempre que o fazia, era para seguir o neto da mulher que agora o abrigava.
Wladmir havia seguido Julian, mantendo-se afastado, na tarde em que ele conversou com Melanie. Viu o rapaz iniciar a conversa com a estranha. Ninguém da família aprovaria. Mas não foi só isso que o deixou preocupado. O russo não compreendia o porquê de Julian ter ido na véspera, à noite, à cidade e, justamente, em hora imprópria. Na hora da dor. E pior, esteve com a mesma garota novamente. Julian pensou em escapar. Sabia que o russo não conseguiria alcançá-lo se assim desejasse. Mas Wladmir já deveria estar furioso o suficiente. Não queria mais irritá-lo. Então, esperou.

- Garoto mau. Por que fugiu de Wladmir? - esbravejou rudemente o russo, cuspindo saliva sobre Julian.

Wladmir possuía uma voz firme que ainda carregava um forte sotaque.

- Calma, Gigante. Eu precisei sair.

O russo amenizou a expressão do rosto. Destoando de sua aparência assustadora, o gigante tratava os da família com candura, principalmente Julian que, mais do que um protegido, passou a considerá-lo como um irmão caçula.

- Perigoso sair. – continuou Wladmir.

- Eu sei, Gigante. - concordou Julian.

- Ninguém pode saber que você conversar com garota estranha.

- Foi por isso que saí. Ela corria perigo. Você sabe.

- Wladmir entende. Família não.

- Eu não poderia deixar nada acontecer a ela. E você sabe muito bem, Gigante, o que aconteceria se eu não fosse até ela.

O russo meneou a cabeça e apontou na direção da fazenda. Julian compreendeu o pensamento do gigante.

- Wladmir não gostar do que garoto fez.

- Nem eu, Gigante. Nem eu.

Os dois seguiram, juntos, pelo descampado.

Alguém, vendo pela primeira vez a movimentação realizada na fazenda, poderia imaginar que aquela família que ali residia era normal, como tantas outras no interior deste país. Mas ela possuía um diferencial. Mais do que esconder, seus integrantes tinham que conviver com os segredos que os uniam. Eram amantes de Luna.
A matriarca, Agnes, carregava sobre si a responsabilidade de manter os acontecimentos dentro dos muros que cercavam a fazenda. Era uma mulher idosa, mas ninguém saberia dizer, ao certo, de quantos anos. Talvez nem ela mesma recordasse. O que se dizia a seu respeito era que já pusera os pés em grande parte do globo terrestre. Inclusive na Rússia, de onde seu filho primogênito Cássius trouxera Wladmir, ainda jovem. Morou em boa parte dos países nórdicos e até no continente asiático passou, antes de aportar na terra que a acolheu definitivamente. Quando seu marido, ferido mortalmente por um inimigo na Grande Batalha, incumbiu-a de chefiar a família, Agnes trouxe os sobreviventes para Monte Seco e, com muita dificuldade, fundou a fazenda que agora ocupavam. Nascida no seio de uma família de poderosos licantropos, em um vilarejo próximo a Via dos Lobos, essa senhora europeia carregava o indelével sentimento da vingança contra os nefastos e antigos inimigos.
Quando Julian, seguido por Wladmir, adentrou o pátio defronte à casa principal, os familiares paralisaram seus afazeres para acompanharem a incursão do jovem rapaz até onde estava a anciã, que já o aguardava na área de entrada. Ele percebeu que, naquele dia, não ouviria somente um dos velhos e conhecidos sermões da avó. Algo mais iria acontecer, já que a curiosidade instaurada pela sua chegada não o deixava com dúvidas. Julian diminuiu o passo com a intenção de obter mais tempo para pensar em algo que o auxiliasse a convencer a avó sobre suas atitudes. Wladmir empurrou-o, tentando demonstrar a todos que não compactuava com ele. O russo também tremia com medo de que a senhora mandassem-no verberar. Julian, temeroso, parou em frente à grande casa. Rústica, alta, sem pintura e com trepadeiras que quase alcançavam os beirais. Fora erguida com o esforço dos primeiros que ali se instalaram. Agnes saiu da imensa área frontal, desceu o degrau e seguiu até onde o neto permanecia parado, olhando para o chão.

- Você sabe o que fez? – perguntou Agnes.

- Sim, eu sei...

Julian nem terminou a frase e sentiu a mão da avó golpear-lhe a face. Não saberia mensurar quanta força aquele braço inválido pelo tempo possuía. Revirou-se e quase foi ao chão. Depois, tentou se recompor. Olhou para frente novamente e sentiu um espasmo de ódio quando viu surgir por detrás da avó a figura do tio. Marcus ostentava um sorriso sarcástico direcionado ao sobrinho. Julian lembrou que fora ele, o tio, a razão de ter que sair da fazenda para socorrer a garota.

- Calma, minha mãe. – sugeriu Marcus, abraçando a mulher – A senhora não tem mais idade pra essas coisas.

- Calma? É isso que me sugere? – Agnes afastou o braço de Marcus - Eu tenho tentado proteger esta família há muito tempo. Já passei por muita coisa que vocês nem podem imaginar. Não vou deixar que as coisas acabem assim.

- Eu sempre lhe digo... O castigo é a melhor solução para esse lobinho.

Julian fulminou o tio com o olhar. Marcus sempre o menosprezara. Cassius, o seu pai, esse, sim, ele temeu. Talvez essa fosse a razão de descontar tanto no sobrinho. Na sua mente, Julian voltou a visualizar o rosto congestionado da garota, quase desfalecia em seus braços. Se não estivesse lá, naquele momento, Marcus não a deixaria viver.

- Quieto, Marcus! – irritou-se ainda mais a velha senhora – Deixe que eu resolvo.

Marcus lançou outro sorriso repleto de sarcasmo na direção do sobrinho. Ele também sabia que Julian fora quem interveio em seu ataque.

- Quantas vezes eu falei para você que está proibido de sair destes muros nas noites de Luna?! Você entendeu?

Julian assentiu com a cabeça.

- Você! – ela apontou para Wladmir – Resolvo com você depois.

Wladmir abaixou a cabeça em submissão. Agnes deu meia-volta e entrou na casa, sendo seguida por Marcus. Simultaneamente, cada um dos familiares retornou às tarefas que executavam antes da chegada de Julian. Wladmir, com os olhos receosos, andava de um lado para o outro, falando em russo, totalmente sem rumo. Julian tinha o entendimento de que a avó realmente possuía toda a razão em chamar sua atenção, a sua decisão de expor-se fora arriscada. Mas também tinha absoluta certeza de que salvar a vida da garota foi o certo a fazer.
Ninguém transpassava aquela muralha. Poucas, muito poucas pessoas, que não eram familiares, podiam entrar. Na verdade, ninguém da cidade ousava aproximar-se do local, desde que se ergueram os muros, e estes novos moradores vieram morar ali. Humano nenhum era bem-vindo, quanto mais se pertencesse à raça odiosa dos inimigos.
Era o meio da tarde daquele dia, e Julian já havia suposto que a situação voltava a normalizar. Foi quando uma voz proveniente do lado de fora clamou pelo seu nome, tirando, definitivamente, a paz do lugar.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Capítulo Sete – O endereço.

Capítulo Sete – O endereço.

Mezzo ansiosa, mezzo curiosa; era assim que Melanie sentia-se em relação a tudo que vivera na noite anterior. Sua mente fervilhava de emoções que nunca tinha experimentado. Não recordava da última vez em que sentira algo tão empolgante e amedrontador. Cada minuto deste novo dia estava sendo consumido por pensamentos do que ocorrera. O uivo, a lua, Julian; o medo que a possuiu e aquele estranho que parara diante de sua janela. Quem era aquele? Tinha muitas perguntas; só não sabia onde encontrar as respostas. Ou será que sabia?
Enternecida, Melanie estava na calçada na rua atrás da pousada, exatamente onde o homem estancara na noite anterior. Ficou ali olhando para a janela do próprio quarto, tentando imaginar o que ele estaria pensando enquanto a observava. Ariela, a menina que morava ao lado da pousada, aproximou-se receosa. Melanie, percebendo que a garota hesitava, lançou-lhe um sorriso da maneira mais verdadeira que pôde. Ariela não retribuiu, mas parou perto de Melanie.

- Oi. – tentou, amigavelmente, a forasteira.

- Oi. – respondeu Ariela, timidamente – Você é Melanie, né?

- Mel, se preferir.

- A Raissinha me falou de você, da sua mãe e do seu irmão. Falou também que vocês vieram ficar uns dias e que vieram de Curitiba. Eu sempre quis conhecer Curitiba.

Melanie surpreendeu-se por tantas palavras saírem daquela boca. Achou que não passaria do “oi”.

- Ela me falou que vocês são uma família legal. – continuou – É tão difícil encontrar gente legal nesta cidade... Neste buraco.

Melanie sentiu um regozijo e pensou o quanto começava a gostar da menina que estava à sua frente.

- Não é tão ruim assim. – emendou Mel, querendo fazer acreditar que estava realmente dizendo a verdade.

- Eu sou Ariela. Mas, na escola, me chamam de muitos nomes. - contou com a voz nitidamente pesarosa – Um diferente a cada semana.

Melanie sentiu-se condoída. Mas não deixou transparecer, já que estava ciente do trauma que Ariela carregava.

- Não esquente, Ariela! Tem muita gente maldosa e em todos os lugares.

Melanie tirou um Trident de menta do bolso de trás da calça. Tirou um, pôs na boca e ofereceu outro para Ariela. A menina olhou para o chiclete e, timidamente, aceitou-o.
- São meus últimos. – disse Melanie – Procurei e não achei por aqui.

- Aqui não tem muita coisa mesmo.

- Eu tenho dois vícios na vida. – confidenciou Melanie para Ariela, que estalou os olhos – Roer as unhas e Trident de menta.

Ariela sorriu pela primeira vez, denunciando seus sentimentos em relação à Melanie; ela também gostou da forasteira. Enquanto trocavam informações uma com a outra sobre suas vidas, Melanie ficou atenta à possibilidade de encontrar um jeito de incluir suas dúvidas sobre Julian. Ou do homem de terno preto da noite anterior. De repente, Ariela saberia alguma informação.

- Quem você conhece de interessante por aqui? – arriscou.

Ariela demorou mais do que o normal para responder, como se estivesse fazendo uma imagem mental de todos os moradores da cidade.

- Para ser sincera, ninguém.

Melanie ficou decepcionada! A garota demorou tanto só para deixá-la no vazio.

- Você quer saber de alguém em especial?

“E agora?” - pensou - “Falo alguma coisa?”

- Mais ou menos. – respondeu.

Ariela franziu a testa e cruzou os braços.

- É um cara, não é?

- É. – respondeu Melanie, incerta sobre qual dos dois mais desejaria saber – O nome dele é Julian.

- Eu sei quem é... – Ariela fechou a cara – E sei também que ele não é muito apropriado pra uma menina... – ela ficou procurando as palavras - ...assim como nós.

- Por que não?

- Eu não gosto de falar de ninguém. Assim como não gosto que falem de mim. Entende?

- Como eu faço pra falar com ele? Você sabe onde ele mora?

- Sei. Mas não acredito que você vá poder falar com ele, não.

- Por que não?

- Melhor do que tentar lhe explicar é lhe mostrar.

Meia hora depois do almoço, estavam as duas de bicicleta na estrada que Julian tinha apontado à Mel. Ariela emprestou à nova colega a bike da prima que vinha algumas vezes por ano passar férias com ela. E também confidenciou que a menina humilhava-a muito. Pedalaram e riram muito no trajeto. Melanie sentiu-se surpresa e admirada ao descobrir o quanto essas sensações faziam-lhe falta. Não recordava também da última vez em que saíra pedalando descompromissada por aí, nem de rir por qualquer bobagem que acontecesse. Em poucos dias, tornara-se uma pessoa muito áspera e crítica. Parecia que tudo estava errado e na hora errada. O tempo passava, e ela via seus antigos sonhos dissiparem-se na sua frente, como areia levada pelo vento.
Chegaram ao velho seminário. Ariela parou, encostou a bicicleta e sentou-se no barranco; nitidamente demonstrava cansaço. Melanie acompanhou a atitude da nova amiga. Ela não se espantou em perceber o tom lúgubre do lugar. Parecia abandonado. Esquecido no tempo. Ao derredor, o mato fazia-se onipresente. Ela analisou cuidadosamente o lugar; no mínimo, deveria ser tombado pelo Patrimônio Histórico da humanidade.

- Isso era um seminário, certo?

- Há muito tempo atrás, foi sim.

- Sabe alguma coisa do lugar?

- Bom... Segundo contam, é do tempo dos escravos, coisa assim.

- Nossa! Então, é velho mesmo.

- Falam também que era esconderijo...

Ariela silencou abruptamente, percebendo que iria passar adiante algo que deveria guardar apenas para si mesma.

- Esconderijo? Como assim?

Esforçando-se para procurar uma explicação, ela levantou e subiu novamente na bicicleta.

- Esconderijo de animais. De bicho... Coisas desse tipo.

Melanie levantou-se também e, em seu rosto, pairava a dúvida sobre a resposta que obteve de Ariela. As duas seguiram pela estrada que as levaria onde Julian morava. Só que, agora, pedalavam em um silêncio constrangedor. O trajeto que fizeram pela estrada principal foi de mais ou menos 20 minutos pedalando tranquilamente. Quando entraram na estradinha secundária, já estavam se falando e rindo. Melanie entendeu que não poderia exigir fidelidade de alguém que acabara de conhecer. Ambas não tinham a obrigação de escancararem seus segredos uma para outra. Pelo menos, por enquanto ainda não.
Antes de adentrarem na propriedade, Ariela parou; Melanie fez o mesmo ao lado da nova amiga. Ariela apontou na direção em que Julian residia. Melanie sentiu o queixo cair. Ela avistou algo como uma muralha alta, inabalável, coberta de vegetação que se estendia monumental de uma extremidade a outra. Parecia um forte. Uma prisão. Nem ao menos podia-se ver o que existia no seu interior, aquilo que o muro guardava tão imponente. No centro, um portão de madeira reforçado. Parecia pesado. Intransponível.

- O que é isso?

- É aí que ele mora.

- Ok! Mas que lugar é esse?

- É uma fazenda, eu acho. Eu só cheguei até aqui, e muito poucas vezes. Acho que essa é a terceira.

- Mas o que tem lá dentro?

- Pessoas... – Ariela diminuiu o tom de voz - ... estranhas. É o que comentam.

- Estranhas como? O que mais comentam?

- Muita coisa. Você vai aprender a ouvir um monte de histórias esquisitas por aqui. Isso aí não é nada.

- Você não acha fora do normal uma coisa dessas?

- Acho. Por isso que eu lhe disse que ele não servia pra você.

Melanie sentiu-se desconfortável com a insinuação de Ariela.

- Não. Eu só fiz amizade com o cara. Nada mais.

Ariela deixou escapar um sorriso.

- Está bem. Cada um sabe de si, não é?

Ela deu a volta com a bicicleta.

- Vamos voltar, agora? Não me sinto bem neste lugar.

- Não; – respondeu, decidida, Melanie – quero ir mais perto. Quero ver o que tem lá dentro.

- Me desculpe, mas você vai sozinha, então. Eu não passo daqui.

- Não acredito que está com medo!

- Eu já disse; daqui não passo. Nem adianta querer me provocar.

A curiosidade instalou-se em Melanie, e ela ficou imaginando como faria para entrar ou, então, como chamaria por Julian. Subiu na bicicleta e olhou para Ariela, demonstrando sua intenção de seguir em direção à muralha.

- Você vai mesmo? – perguntou Ariela.

- Vou chegar lá perto e chamar pelo Julian. – respondeu - Deve ter algum jeito de me ouvir. Você me espera aqui, pelo menos?

- Um pouco, eu espero. Agora, se você conseguir entrar e demorar, eu volto pra casa.

Melanie acenou com a cabeça, selando o acordo. Ariela posicionou-se para ver a forasteira que seguia lentamente pela estradinha em direção ao portão. Minutos depois, parada, diante do íngreme portão, Melanie, tardiamente, percebeu que talvez sua ideia não tivesse sido boa. Não havia frestas, nem fechadura. Deveria estar trancado por dentro. Seria prudente ela gritar por Julian? Pensou em recuar e avistou Ariela ao longe; ela ainda estava lá, imóvel. Se retornasse sem nenhuma tentativa, possivelmente a garota iria achar que ela estaria com medo. Mas o pior era que, realmente, sentia algo próximo ao medo; só não queria admitir. Melanie tomou coragem e gritou o nome de Julian, mas a voz saiu fraca, quase inaudível. Então, encorajou-se ainda mais e gritou com mais ímpeto. Sua voz ecoou. Ela olhou para a amiga distante, e esta lhe acenou indicando que, ao menos, havia ouvido. Certo tempo passou, e Melanie decidiu voltar. Agora já poderia, pois provara à amiga que chamou pelo rapaz, mas ninguém do lado dentro do muro a ouviu. Subiu outra vez na bicicleta e, antes mesmo de pedalar, escutou o barulho amedrontador do portão sendo aberto.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Capítulo Seis – Lua Azul

Capítulo Seis – La Bella Luna

Na pousada, a hora do jantar era muito cedo. Melanie acostumou-se a comer em horários desordenados e, algumas vezes, na frente da TV ou do PC. Ficar em volta de uma mesa, jantando ao lado de gente estranha, não era muito a sua praia. A comida era boa; tempero caseiro, mas, ainda assim, sentia falta de comer pizza, ou ir ao McDonald’s do shopping. Estava ali há poucos dias e já sentia falta de tanta coisa!
Depois do jantar, sempre migrava para o quarto. Ficava sozinha. Sua mãe permanecia com Dona Carmélia e com outra mulher que ela não sabia o nome, vendo as novelas naquela TV do período cretáceo. Nicolas juntava-se à Raíssa que, quase sempre, encontrava alguma atividade interessante para fazerem na outra sala menor. Mas, agora, ela sentiu uma vontade diferente, a de sair. Estava chateada; a lembrança de Julian abraçado a outra garota assombrava-a. O desejo de sumir daquele lugar reapareceu com anseio redobrado. Mas, no momento, sentia vontade de estar do lado de fora. As paredes estavam sufocando-a. Atravessou o salão de entrada e foi seguida pelo olhar atento das mulheres que, ladeadas, ocupavam o sofá. Colocou a mão na maçaneta e girou. A porta não abriu, estava trancada.

- Hoje não, querida!

Dona Carmélia, num tom fraternal, advertiu. Melanie olhou na direção das mulheres e notou em sua mãe o mesmo ar de surpresa.

- Por favor! Hoje ninguém sai. – explicou Dona Carmélia, no mesmo tom suave – Por isso está trancada.

E olhou para Flávia.

- Não gosto de fazer esse tipo de coisa. E nem quero assustar ninguém. Mas tem algumas noites em que alguns arruaceiros de cidades vizinhas, ou sei lá de onde, vêm fazer algazarra aqui. Mexem com as pessoas na rua; então, pra evitar confusão, nós ficamos todos em casa. – ela fez uma breve pausa – Sem exceções.

- E nunca ninguém viu quem são? Ninguém chama a polícia? - perguntou Flávia, preocupada.

- Já acontece há muito tempo. Ficamos dentro de casa, assim como os dois únicos policiais que temos.

- Isso quando o Waldemar não vai encher a cara lá no Castelinho. – completou a outra mulher, com os olhos vidrados na imagem distorcida da TV – Daí, só tem um policial.

- Não fique chateada, querida. Vai haver outras noites pra você sair. – continuou Dona Carmélia – Por que não senta aqui conosco?

- Isso, filha. – completou Flávia, indicando a poltrona ao lado – São os últimos capítulos.

- Não. – respondeu uma desapontada Melanie – Vou pro quarto ouvir música.

A garota retirou-se em direção ao quarto e percebeu que a conversa continuou. Ela conhecia sua mãe. Sabia que Flávia não ficara satisfeita com as explicações. Com certeza, iria querer descobrir mais sobre esses acontecimentos. Melanie também conhecia a si mesma; ela sabia que não seria esse tipo de obstáculo que a prenderia quando, enfim, resolvia sair.

Não se considerando uma pessoa medrosa, Mel acreditava que, dependendo da situação, conseguiria se garantir. Era horário de verão, mas já estava bem escuro; parecendo que os sons noturnos que vinham de todos os lugares da cidade amplificavam-se àquela hora. Ela sentia uma leve brisa refrescante em seu rosto. Estava na esquina de trás da pousada, olhando na direção daquela pracinha. Nunca havia se imaginado andando sozinha por uma rua semiescura e ainda mais com a tal ameaça de que gente baderneira viria aprontar por ali. Mas, como a velha senhora sabia que seria justamente naquela noite? Vai ver ela era como aquelas ciganas e, nas horas vagas, fazia previsões. Melanie colocou as mãos nos bolsos de trás do jeans e caminhou querendo aparentar tranquilidade. Estava com sua calça preferida. Ainda não a tinha usado desde que chegara; aquela que somente se coloca em ocasiões que se consideram especiais. A garota não se deixaria abater por qualquer situação que lhe provocasse medo, mas gelou por inteira quando pôs os pés na pracinha novamente. Se de dia era um lugar ermo, à noite parecia cenário de uma história macabra. Melanie até concordou que gostava de filmes de terror, mas não de vivenciar um.

“Meu Deus! O que eu estou fazendo aqui?” – pensou ela, recriminando a si mesma.

Não foram poucas as vezes em que, assistindo a algum filme de suspense, xingou a protagonista por sair sozinha ou entrar em lugares escuros. Agora estava ela ali, na mesma situação. Sentou-se no banco e, seguidamente, olhou para onde Julian havia surgido. A rua era pouco iluminada até uma altura; depois, era breu total. Olhou para o céu e imediatamente compreendeu o porquê de parecer que a praça estava tão iluminada. Não eram somente as luzes opacas da iluminação pública que a deixavam luminosa; era a luz da lua também.

“Nossa!” – pensou – “Que lindo!”

A lua brilhante clamava por atenção no céu estrelado. Grande. Luminosa, num tom azulado. Lua azul. Melanie tirou seu Mp4 do bolso, colocou os fones, deixando o volume bem baixo, no caso de surgir outro barulho por perto. Ouviu uma música, depois outra e uma terceira. Desligou o aparelho e tornou a guardá-lo no bolso. Nem suas músicas prediletas faziam-lhe companhia. Já estava a ponto de levantar e retornar à pousada quando ouviu o som mais horripilante de toda a sua vida. Entrou em seus ouvidos e atingiu o âmago do seu ser. Sombrio. Um uivo sombrio. Melanie levantou num rompante, seu coração acelerou tanto que teve dificuldade de respirar. O ser causador do uivo estava ao longe, mas sua presença era viva, fervilhando nas suas veias. Ela quis correr, mas suas pernas travaram. Quase tombou para trás. A sensação de que flashes de luzes circulavam-na voltou a acontecer. Piscavam ao seu redor e seguiam na direção do uivo, que agora se repetiu mais próximo e ainda mais congelante. O som das espadas também se fazia presente. Muitas espadas entrelaçando-se em um campo de batalha.
Melanie sentia-se perdida. Estagnada. Estava sozinha no meio da noite. Sentiu que um vulto aproximava-se, ofegante. Cada vez mais perto. Ela não conseguia nem mexer os olhos; parecia estar em um transe. Não podia gritar por ajuda. Não podia correr. Uma mão pesada caiu sobre o seu ombro.

- O que você está fazendo aqui?

Não conseguiu olhar para o rosto de quem a segurava, mas reconheceu a voz: Julian.

- Você não deveria estar aqui.

Melanie sentiu o corpo vascolejar.

- Melanie!

Ouviu seu nome, e um forte chacoalhar despertou-a do transe. Ela olhou para o rosto de Julian e procurou seus olhos; um gemido de pavor saiu da sua garganta quando os encontrou. Nunca havia presenciado olhos tão grandes. No centro, um vermelho tom de sangue envolvido pela escuridão. Outro uivo, agora bem próximo, ecoou sobre luminosidade azulada da lua. Julian ergueu a cabeça e farejou o ar, olhou para Melanie e apertou doloridamente seus braços.

- Você não pode ficar aqui. – esbravejou e empurrou-a na direção contrária ao uivo – Corra e não olhe pra trás.

A garota hesitou e começou a chorar. A voz de Julian, num tom mais grave, advertiu-a.

- Corra!

Com excessiva dificuldade, Melanie deu os primeiros passos. Ela não se atreveu a olhar para trás, mas sentiu que Julian agitava-se, grunhindo. Então, correu desesperadamente. Ao alcançar a quadra da pousada, ouviu novamente o uivo, agora seguido de outro. Entrou ainda em pânico pela janela e não se deparou com ninguém dentro do quarto. Possivelmente sua mãe ainda estava vendo TV, e Nicolas brincava com Raíssa.
Pôs-se debaixo das cobertas; tremia muito. Levou alguns longos minutos para começar a acalmar-se. Aos poucos, colocou o rosto para fora do cobertor e olhou por todo o interior do quarto. Quando seus olhos depararam-se com a janela, percebeu que a havia esquecido aberta ao entrar, afoita; quase esmoreceu. O vento soprava fracamente a cortina para dentro do quarto. Melanie prendeu a respiração, fechou os olhos num reflexo desesperador e, lentamente, foi posicionando-se na cama. Firmou um dos pés no chão e pareceu-lhe que assoalho de madeira não continha fundo. Custosamente ficou ereta e seguiu na direção da janela. Clamou silenciosamente pelo auxílio dos céus, ação que raramente fazia. Considerava-se autossuficiente nessas questões. Agora percebia que certos momentos acontecem para mostrar o quanto pensava e agia errado.
Não havia barulho algum do lado de fora. Os uivos tinham cessado. Só o vento e o cadenciado balançar dos galhos das árvores do quintal faziam-se ouvir. Mesmo assim, Melanie permanecia apavorada. Olhou para fora. Sabia que não devia, mas fez assim mesmo. Não avistou movimento algum fora do comum. Sentiu um impulso de fechar rapidamente as folhas da janela e trancá-las, mas se deteve. Curvou-se levemente com o intuito de observar as laterais da grande casa. Olhou para um dos lados e não viu nada. Refez o mesmo processo para o outro; e também nada avistou. Suspirou aliviada e colocou-se novamente para dentro do quarto.
Não existia ameaça alguma lá fora; concordou que já estava na hora de fechar a janela e esquecer o que acontecera. Quando as duas folhas estavam quase se juntando pela pequena fresta, ela avistou-o saindo das sombras. Imponente. Ele estava na calçada do outro lado da rua. A jovem menina sentiu, no momento em que seus olhos encontraram-se, uma ligação universal com aquele que a observava. Novamente aquela sensação apossou-se dela. Parecia que o quarto estava tomado por luzes que surgiam e desapareciam em segundos. A sinfonia das espadas em combate fazia-se presente. Mas, agora, não se sentia mais ameaçada. Melanie sabia quem era ele. Era o belo estranho do Gallardo vermelho. Mas o que ele fazia ali, parado, olhando fixamente para ela? Trajava um terno preto. Estava elegante. Cabelos negros brilhantes e com um tom azulado pelo brilho da lua que o tornava sedutor.
Mel não sentiu medo, apenas impulsionada a ficar observando aquele desconhecido pela noite toda, se necessário fosse. A única sensação sentida eram as batidas do próprio coração, que a conduziam ao excitamento de ficar admirada por aquele que, lá no fundo, trazia-lhe segurança. Mas seus pensamentos foram cortados pelo som nefasto do mesmo uivo sombrio que havia escutado minutos atrás. O estranho do lado de fora mexeu levemente a cabeça para o lado de onde o uivo tinha partido. Ela seguiu seus olhos que se projetaram na direção da lua. A imensa lua que reinava no céu. As luzes intensificaram-se ao redor de Melanie, e o som das espadas pareciam golpes dados com força brutal, golpeando sem pararem. O estranho olhou para ela novamente e acenou num gesto cortês em sinal de despedida. Ela não sabia o que fazer, apenas retribuiu acanhada o gesto. Ele recuou e desapareceu nas sombras. Melanie fechou rapidamente a janela e jogou-se debaixo das cobertas outra vez. Agora não temia mais pela própria vida, mas, sim, pela do belo estranho que acabara de despedir-se.

Capítulo Cinco - Angelique

Capítulo Cinco - Angelique

Havia os dois lados em residir numa localidade como Monte Seco. Julian e os seus familiares não eram bem-vistos pelos demais moradores do lugar. Existia um distanciamento proposital de ambas as partes. O garoto e os demais de sua numerosa família preferiam o isolamento; moravam em uma grande fazenda, com muitos hectares de terra, cercados por um muro e muitos mistérios. De tempos em tempos, novas histórias eram criadas sobre acontecimentos que envolviam um ou mais dos habitantes dali. Algumas eram boatos reciclados de casos antigos; outros, possivelmente verdades. Julian estava mais do que habituado a tudo isso. Não mais se importava de chegar a lugares e ver algumas pessoas saindo às pressas ou cochichando a seu respeito. Por outro lado, quase sempre o que acontecia em Monte Seco não saía dali. Isso era bom. Na situação em que viviam Julian e a família, jamais poderiam fazer parte de um grande centro.
A responsabilidade de suprir a família com o que faltava não era sua, mas, assim mesmo, Julian doava uma parcela do seu tempo para ajudar no que fosse preciso. A avó, Agnes, o havia incumbido de ir até a cidade mais próxima a fim de comprar para ela o tecido necessário para um novo vestido para Angelique, sua prima.
Angelique era uma garota bonita. Moderna algumas vezes e rústica em outras. Nascera com a cor negra nos longos cabelos lisos, mas os tinha em tom avermelhado no momento. “Fiz luzes.”, disse ela quando surgiu altiva na fazenda, depois de ter ido à capital. Vestia-se com roupas simples, como as demais mulheres da família. Roupas feitas por elas mesmas; mas, algumas vezes, quando sentia vontade, retirava as mais atuais, mais da moda, que mantinha guardadas e desfilava para si mesma diante de um espelho. Suas atitudes quase sempre geravam um sentimento de desaprovação dos mais velhos e de inveja dos mais novos.
Julian sabia o que aconteceria naquela noite; não poderia evitar. Por isso, precisaria estar dentro dos muros antes do pôr-do-sol. Teria que ir bem cedo à loja que a avó indicara para comprar o tecido. Tinha a hora marcada para pegar o ônibus e já estava atrasado. Angelique entrou sorridente em seu quarto. Lugar simples, com uma cama, um guarda-roupa pequeno e uma mesinha na qual Julian guardava alguns pertences. Tinha uma pequena coleção de bonés americanos dos Yankees, que nunca usava. Ficavam ali guardados, sobre a mesa. No porta-retrato, uma foto sua com os pais falecidos. Em uma foto menor, estava Julian, com uns três anos de idade, usando o primeiro boné do time de beisebol de Nova Iorque, dado pelo pai.

- Sabe qual cor trazer; não sabe? – perguntou Angelique.

Julian continuou vestindo a roupa sem responder.

- Não precisa me ignorar. – continuou a garota, cruzando os braços – Sei muito bem aonde o senhor vai.

- Não sei do que você está falando. – respondeu Julian.

- Azul ou verde-esmeralda.

- Azul ou verde-esmeralda o quê, menina?

- Não! Já sei, melhor... Hum! Deixa me ver... Prateado.

Julian balançou a cabeça, calçando os sapatos.

- Vermelho, não. Apesar de gostar da cor, eu já tenho muitos vermelhos.

- Já lhe disse, Angel, não sei do que você está falando.

- Vai dar uma de desentendido? Eu sei que a vovó o mandou comprar um presente pra mim. E nós dois sabemos que ela só sabe lhe pedir pra comprar tecido pra fazer um vestido. Todo aniversário é assim.

- Então, se você já sabe, por que está me chateando?

- Porque o que você comprou anteriormente era um corte horrível.

- Só segui as orientações que me passaram.

- Por isso, eu vou com você hoje.

Julian olhou fixamente para a prima.

- Não. – enfatizou - Vou sozinho.

- Não faça assim, cabeção! – disse a garota – Esse pode ser o seu presente de aniversário pra mim.

- Eu lhe compro outro presente. Não estou a fim de mais encrenca com o seu pai.

- Ele nem vai ficar sabendo. – insistiu Angelique – A gente vai e volta logo. Ele nem vai perceber.

- Vou falar só mais uma vez. – falou mais sério, colocando a jaqueta preta - Vou sozinho e ponto final.

Angelique colocou as mãos na cintura, sorrindo. Ela já sabia o que realmente iria acontecer.

O retorno em silêncio de Melanie tinha duas finalidades. Primeiramente, para evitar ter de explicar à mãe a razão do aparente stand by sofrido ao perceber Julian abraçado a uma garota de cabelos vermelhos. E, em segundo lugar, ponderar que, de repente, estava sendo um pouco exagerada em relação a ele. Afinal, acabara de conhecê-lo. Não sabia quase nada a respeito dele. Então, como poderia sentir ciúmes numa situação como essa? Mas, infelizmente, era o que realmente sentia.

- Hum! Problemas no planeta Melanie? – perguntou, provocando, Flávia.

Melanie não queria comentar nada, mas certamente a mãe continuaria a provocá-la até ela se manifestar.

- Não, mãe. Minha vida é perfeita.

- Não sei se você sabe, mas eu a conheço bem melhor do que você mesma se conhece. Por isso, sei quando você não está bem de verdade e quando está só de onda.

Ela olhou para a mãe, confirmando que se sentia como se estivesse perdida no meio do oceano, sem farol para orientá-la.

- Não esqueça que já estive no seu lugar. – continuou Flávia.

- Ah, não, mãe! Não vai começar com o discurso do “quando eu tinha sua idade”.

– Não é discurso, Mel. É troca de experiências. Possivelmente, eu não passei pelo mesmo problema por que você está passando, mas tive, sim, problemas para resolver.

- Eu sei. Mas tem coisas que, talvez, eu precise passar sozinha.

- Sim, concordo. Mas, se você pode contar com alguém que se importa, ajuda bastante.

Só uma atitude Melanie poderia tomar, naquela hora: dar um sorriso de agradecimento à Flávia. Afinal, a mãe sempre se manteve firme ao seu lado em situações adversas. Sempre fora seu farol.

A caminhonete da família aguentou muitas e muitas viagens até as cidades aos arredores de Monte Seco. Agora, a velha F-100 de guerra não dava ares de suportar mais uma. Devido a isso, ir de ônibus era a solução para que Julian fosse buscar o que não tivesse em Monte Seco, ou seja, quase tudo.
Foi uma tarde agradável em companhia da prima, mas desde que Julian viu aquela garota da cidade grande, não conseguia mais parar de pensar em seus lindos cabelos, esvoaçados pelo vento e trazendo às suas apuradas narinas o cheiro suave que pairava sobre ela. Tinha os olhos cheios de vida e carregava junto dela algo que Julian não conseguia identificar. Apenas o que ela guardava dentro de si despertava um domínio sobre ele. Julian até desejou procurá-la novamente, mas as tarefas da fazenda estavam tomando muito de seu tempo. Viu-a duas vezes depois do primeiro encontro, mas sempre de longe. Como já sabia que ela estava residindo na pousada, teve receio de aproximar-se, e ela o rechaçar. Talvez a garota já soubesse de uma ou até mais histórias que contavam a respeito de sua família. Seria melhor ficar com a ilusão de que ela, ocasionalmente, também pensava nele.
Horas depois, estavam os dois voltando da cidade vizinha. A sensação de observar as paisagens, que passavam rapidamente pela janela do ônibus, fazia com que Julian, por alguns instantes, esquecesse os acontecimentos que sobreviriam à noite daquele mesmo dia. Cada casa que ele avistava à beira da estrada fazia com que pensasse na vida normal que ele jamais teria. Seria maravilhoso viver em um lugar como aquele, sem se preocupar em esconder seus segredos, sem a possibilidade de trazer perigo a alguém, mesmo que involuntariamente. Poder conhecer uma pessoa como Melanie e dedicar-se a ela, sem a remota chance de fazer-lhe mal...
Eram quase cinco horas da tarde. Julian e Angelique desceram do ônibus, retornando da cidade vizinha. Ela carregava, feliz, um embrulho envolvido em papel de presente. Eles precisavam se apressar para retornarem o quanto antes à fazenda. Algum tempo depois, cansados, os dois chegaram à casa principal. Marcus, pai de Angelique, esperava do lado de fora. A garota já conhecia muito bem as expressões paternas. Sabia quando ele não estava contente com alguma situação. Essa era a sua expressão no momento, encarando o sobrinho.

- Onde você foi? – perguntou Marcus à Angelique.

Marcus era irmão de Cassius, pai de Julian. O garoto tinha conhecimento de que era um homem impiedoso, mestre da traição. Considerava Julian, assim como a seu próprio irmão falecido, um obstáculo a ser ignorado. Não gostava da aproximação da filha com o filho do irmão.

- Só fui acompanhar o Julian.

- Ele não sabe se virar sozinho?

- Claro que sim, pai. Mas, de vez em quando, eu gosto de sair desta cidade. Ver coisas novas.

- Da próxima vez, eu levo você para ver essas coisa novas, ou o Elias a leva.

Elias era o filho mais velho de Aurélio, braço direito de Marcus. E tinha a mesma idade de Julian.

- Não se preocupe. – disse Julian – Na próxima vez, eu vou sozinho.

- Será melhor para você mesmo, se cumprir o que está dizendo. Caso contrário...

Julian considerou melhor não revidar a provocação do tio. Estava cansado pela viagem, e a discussão não levaria a lugar algum, mesmo porque Marcus sempre encontrava um modo de provocá-lo. Nenhum dos três precisou falar mais nada, enquanto Julian e Angelique entravam na casa principal. Todos já sabiam, e muito bem, o que cada um pensava.
Quando Julian retornara à fazenda, no dia em que conhecera Melanie, Marcus sentiu o cheiro da garota no sobrinho e reconheceu, imediatamente, que ela trazia algo diferente, perigoso, que precisava ser combatido. Algo que, com certeza, Julian não percebera. E, naquela noite, era hora de pôr isso à prova.