terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Capítulo Sete – O endereço.

Capítulo Sete – O endereço.

Mezzo ansiosa, mezzo curiosa; era assim que Melanie sentia-se em relação a tudo que vivera na noite anterior. Sua mente fervilhava de emoções que nunca tinha experimentado. Não recordava da última vez em que sentira algo tão empolgante e amedrontador. Cada minuto deste novo dia estava sendo consumido por pensamentos do que ocorrera. O uivo, a lua, Julian; o medo que a possuiu e aquele estranho que parara diante de sua janela. Quem era aquele? Tinha muitas perguntas; só não sabia onde encontrar as respostas. Ou será que sabia?
Enternecida, Melanie estava na calçada na rua atrás da pousada, exatamente onde o homem estancara na noite anterior. Ficou ali olhando para a janela do próprio quarto, tentando imaginar o que ele estaria pensando enquanto a observava. Ariela, a menina que morava ao lado da pousada, aproximou-se receosa. Melanie, percebendo que a garota hesitava, lançou-lhe um sorriso da maneira mais verdadeira que pôde. Ariela não retribuiu, mas parou perto de Melanie.

- Oi. – tentou, amigavelmente, a forasteira.

- Oi. – respondeu Ariela, timidamente – Você é Melanie, né?

- Mel, se preferir.

- A Raissinha me falou de você, da sua mãe e do seu irmão. Falou também que vocês vieram ficar uns dias e que vieram de Curitiba. Eu sempre quis conhecer Curitiba.

Melanie surpreendeu-se por tantas palavras saírem daquela boca. Achou que não passaria do “oi”.

- Ela me falou que vocês são uma família legal. – continuou – É tão difícil encontrar gente legal nesta cidade... Neste buraco.

Melanie sentiu um regozijo e pensou o quanto começava a gostar da menina que estava à sua frente.

- Não é tão ruim assim. – emendou Mel, querendo fazer acreditar que estava realmente dizendo a verdade.

- Eu sou Ariela. Mas, na escola, me chamam de muitos nomes. - contou com a voz nitidamente pesarosa – Um diferente a cada semana.

Melanie sentiu-se condoída. Mas não deixou transparecer, já que estava ciente do trauma que Ariela carregava.

- Não esquente, Ariela! Tem muita gente maldosa e em todos os lugares.

Melanie tirou um Trident de menta do bolso de trás da calça. Tirou um, pôs na boca e ofereceu outro para Ariela. A menina olhou para o chiclete e, timidamente, aceitou-o.
- São meus últimos. – disse Melanie – Procurei e não achei por aqui.

- Aqui não tem muita coisa mesmo.

- Eu tenho dois vícios na vida. – confidenciou Melanie para Ariela, que estalou os olhos – Roer as unhas e Trident de menta.

Ariela sorriu pela primeira vez, denunciando seus sentimentos em relação à Melanie; ela também gostou da forasteira. Enquanto trocavam informações uma com a outra sobre suas vidas, Melanie ficou atenta à possibilidade de encontrar um jeito de incluir suas dúvidas sobre Julian. Ou do homem de terno preto da noite anterior. De repente, Ariela saberia alguma informação.

- Quem você conhece de interessante por aqui? – arriscou.

Ariela demorou mais do que o normal para responder, como se estivesse fazendo uma imagem mental de todos os moradores da cidade.

- Para ser sincera, ninguém.

Melanie ficou decepcionada! A garota demorou tanto só para deixá-la no vazio.

- Você quer saber de alguém em especial?

“E agora?” - pensou - “Falo alguma coisa?”

- Mais ou menos. – respondeu.

Ariela franziu a testa e cruzou os braços.

- É um cara, não é?

- É. – respondeu Melanie, incerta sobre qual dos dois mais desejaria saber – O nome dele é Julian.

- Eu sei quem é... – Ariela fechou a cara – E sei também que ele não é muito apropriado pra uma menina... – ela ficou procurando as palavras - ...assim como nós.

- Por que não?

- Eu não gosto de falar de ninguém. Assim como não gosto que falem de mim. Entende?

- Como eu faço pra falar com ele? Você sabe onde ele mora?

- Sei. Mas não acredito que você vá poder falar com ele, não.

- Por que não?

- Melhor do que tentar lhe explicar é lhe mostrar.

Meia hora depois do almoço, estavam as duas de bicicleta na estrada que Julian tinha apontado à Mel. Ariela emprestou à nova colega a bike da prima que vinha algumas vezes por ano passar férias com ela. E também confidenciou que a menina humilhava-a muito. Pedalaram e riram muito no trajeto. Melanie sentiu-se surpresa e admirada ao descobrir o quanto essas sensações faziam-lhe falta. Não recordava também da última vez em que saíra pedalando descompromissada por aí, nem de rir por qualquer bobagem que acontecesse. Em poucos dias, tornara-se uma pessoa muito áspera e crítica. Parecia que tudo estava errado e na hora errada. O tempo passava, e ela via seus antigos sonhos dissiparem-se na sua frente, como areia levada pelo vento.
Chegaram ao velho seminário. Ariela parou, encostou a bicicleta e sentou-se no barranco; nitidamente demonstrava cansaço. Melanie acompanhou a atitude da nova amiga. Ela não se espantou em perceber o tom lúgubre do lugar. Parecia abandonado. Esquecido no tempo. Ao derredor, o mato fazia-se onipresente. Ela analisou cuidadosamente o lugar; no mínimo, deveria ser tombado pelo Patrimônio Histórico da humanidade.

- Isso era um seminário, certo?

- Há muito tempo atrás, foi sim.

- Sabe alguma coisa do lugar?

- Bom... Segundo contam, é do tempo dos escravos, coisa assim.

- Nossa! Então, é velho mesmo.

- Falam também que era esconderijo...

Ariela silencou abruptamente, percebendo que iria passar adiante algo que deveria guardar apenas para si mesma.

- Esconderijo? Como assim?

Esforçando-se para procurar uma explicação, ela levantou e subiu novamente na bicicleta.

- Esconderijo de animais. De bicho... Coisas desse tipo.

Melanie levantou-se também e, em seu rosto, pairava a dúvida sobre a resposta que obteve de Ariela. As duas seguiram pela estrada que as levaria onde Julian morava. Só que, agora, pedalavam em um silêncio constrangedor. O trajeto que fizeram pela estrada principal foi de mais ou menos 20 minutos pedalando tranquilamente. Quando entraram na estradinha secundária, já estavam se falando e rindo. Melanie entendeu que não poderia exigir fidelidade de alguém que acabara de conhecer. Ambas não tinham a obrigação de escancararem seus segredos uma para outra. Pelo menos, por enquanto ainda não.
Antes de adentrarem na propriedade, Ariela parou; Melanie fez o mesmo ao lado da nova amiga. Ariela apontou na direção em que Julian residia. Melanie sentiu o queixo cair. Ela avistou algo como uma muralha alta, inabalável, coberta de vegetação que se estendia monumental de uma extremidade a outra. Parecia um forte. Uma prisão. Nem ao menos podia-se ver o que existia no seu interior, aquilo que o muro guardava tão imponente. No centro, um portão de madeira reforçado. Parecia pesado. Intransponível.

- O que é isso?

- É aí que ele mora.

- Ok! Mas que lugar é esse?

- É uma fazenda, eu acho. Eu só cheguei até aqui, e muito poucas vezes. Acho que essa é a terceira.

- Mas o que tem lá dentro?

- Pessoas... – Ariela diminuiu o tom de voz - ... estranhas. É o que comentam.

- Estranhas como? O que mais comentam?

- Muita coisa. Você vai aprender a ouvir um monte de histórias esquisitas por aqui. Isso aí não é nada.

- Você não acha fora do normal uma coisa dessas?

- Acho. Por isso que eu lhe disse que ele não servia pra você.

Melanie sentiu-se desconfortável com a insinuação de Ariela.

- Não. Eu só fiz amizade com o cara. Nada mais.

Ariela deixou escapar um sorriso.

- Está bem. Cada um sabe de si, não é?

Ela deu a volta com a bicicleta.

- Vamos voltar, agora? Não me sinto bem neste lugar.

- Não; – respondeu, decidida, Melanie – quero ir mais perto. Quero ver o que tem lá dentro.

- Me desculpe, mas você vai sozinha, então. Eu não passo daqui.

- Não acredito que está com medo!

- Eu já disse; daqui não passo. Nem adianta querer me provocar.

A curiosidade instalou-se em Melanie, e ela ficou imaginando como faria para entrar ou, então, como chamaria por Julian. Subiu na bicicleta e olhou para Ariela, demonstrando sua intenção de seguir em direção à muralha.

- Você vai mesmo? – perguntou Ariela.

- Vou chegar lá perto e chamar pelo Julian. – respondeu - Deve ter algum jeito de me ouvir. Você me espera aqui, pelo menos?

- Um pouco, eu espero. Agora, se você conseguir entrar e demorar, eu volto pra casa.

Melanie acenou com a cabeça, selando o acordo. Ariela posicionou-se para ver a forasteira que seguia lentamente pela estradinha em direção ao portão. Minutos depois, parada, diante do íngreme portão, Melanie, tardiamente, percebeu que talvez sua ideia não tivesse sido boa. Não havia frestas, nem fechadura. Deveria estar trancado por dentro. Seria prudente ela gritar por Julian? Pensou em recuar e avistou Ariela ao longe; ela ainda estava lá, imóvel. Se retornasse sem nenhuma tentativa, possivelmente a garota iria achar que ela estaria com medo. Mas o pior era que, realmente, sentia algo próximo ao medo; só não queria admitir. Melanie tomou coragem e gritou o nome de Julian, mas a voz saiu fraca, quase inaudível. Então, encorajou-se ainda mais e gritou com mais ímpeto. Sua voz ecoou. Ela olhou para a amiga distante, e esta lhe acenou indicando que, ao menos, havia ouvido. Certo tempo passou, e Melanie decidiu voltar. Agora já poderia, pois provara à amiga que chamou pelo rapaz, mas ninguém do lado dentro do muro a ouviu. Subiu outra vez na bicicleta e, antes mesmo de pedalar, escutou o barulho amedrontador do portão sendo aberto.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Capítulo Seis – Lua Azul

Capítulo Seis – La Bella Luna

Na pousada, a hora do jantar era muito cedo. Melanie acostumou-se a comer em horários desordenados e, algumas vezes, na frente da TV ou do PC. Ficar em volta de uma mesa, jantando ao lado de gente estranha, não era muito a sua praia. A comida era boa; tempero caseiro, mas, ainda assim, sentia falta de comer pizza, ou ir ao McDonald’s do shopping. Estava ali há poucos dias e já sentia falta de tanta coisa!
Depois do jantar, sempre migrava para o quarto. Ficava sozinha. Sua mãe permanecia com Dona Carmélia e com outra mulher que ela não sabia o nome, vendo as novelas naquela TV do período cretáceo. Nicolas juntava-se à Raíssa que, quase sempre, encontrava alguma atividade interessante para fazerem na outra sala menor. Mas, agora, ela sentiu uma vontade diferente, a de sair. Estava chateada; a lembrança de Julian abraçado a outra garota assombrava-a. O desejo de sumir daquele lugar reapareceu com anseio redobrado. Mas, no momento, sentia vontade de estar do lado de fora. As paredes estavam sufocando-a. Atravessou o salão de entrada e foi seguida pelo olhar atento das mulheres que, ladeadas, ocupavam o sofá. Colocou a mão na maçaneta e girou. A porta não abriu, estava trancada.

- Hoje não, querida!

Dona Carmélia, num tom fraternal, advertiu. Melanie olhou na direção das mulheres e notou em sua mãe o mesmo ar de surpresa.

- Por favor! Hoje ninguém sai. – explicou Dona Carmélia, no mesmo tom suave – Por isso está trancada.

E olhou para Flávia.

- Não gosto de fazer esse tipo de coisa. E nem quero assustar ninguém. Mas tem algumas noites em que alguns arruaceiros de cidades vizinhas, ou sei lá de onde, vêm fazer algazarra aqui. Mexem com as pessoas na rua; então, pra evitar confusão, nós ficamos todos em casa. – ela fez uma breve pausa – Sem exceções.

- E nunca ninguém viu quem são? Ninguém chama a polícia? - perguntou Flávia, preocupada.

- Já acontece há muito tempo. Ficamos dentro de casa, assim como os dois únicos policiais que temos.

- Isso quando o Waldemar não vai encher a cara lá no Castelinho. – completou a outra mulher, com os olhos vidrados na imagem distorcida da TV – Daí, só tem um policial.

- Não fique chateada, querida. Vai haver outras noites pra você sair. – continuou Dona Carmélia – Por que não senta aqui conosco?

- Isso, filha. – completou Flávia, indicando a poltrona ao lado – São os últimos capítulos.

- Não. – respondeu uma desapontada Melanie – Vou pro quarto ouvir música.

A garota retirou-se em direção ao quarto e percebeu que a conversa continuou. Ela conhecia sua mãe. Sabia que Flávia não ficara satisfeita com as explicações. Com certeza, iria querer descobrir mais sobre esses acontecimentos. Melanie também conhecia a si mesma; ela sabia que não seria esse tipo de obstáculo que a prenderia quando, enfim, resolvia sair.

Não se considerando uma pessoa medrosa, Mel acreditava que, dependendo da situação, conseguiria se garantir. Era horário de verão, mas já estava bem escuro; parecendo que os sons noturnos que vinham de todos os lugares da cidade amplificavam-se àquela hora. Ela sentia uma leve brisa refrescante em seu rosto. Estava na esquina de trás da pousada, olhando na direção daquela pracinha. Nunca havia se imaginado andando sozinha por uma rua semiescura e ainda mais com a tal ameaça de que gente baderneira viria aprontar por ali. Mas, como a velha senhora sabia que seria justamente naquela noite? Vai ver ela era como aquelas ciganas e, nas horas vagas, fazia previsões. Melanie colocou as mãos nos bolsos de trás do jeans e caminhou querendo aparentar tranquilidade. Estava com sua calça preferida. Ainda não a tinha usado desde que chegara; aquela que somente se coloca em ocasiões que se consideram especiais. A garota não se deixaria abater por qualquer situação que lhe provocasse medo, mas gelou por inteira quando pôs os pés na pracinha novamente. Se de dia era um lugar ermo, à noite parecia cenário de uma história macabra. Melanie até concordou que gostava de filmes de terror, mas não de vivenciar um.

“Meu Deus! O que eu estou fazendo aqui?” – pensou ela, recriminando a si mesma.

Não foram poucas as vezes em que, assistindo a algum filme de suspense, xingou a protagonista por sair sozinha ou entrar em lugares escuros. Agora estava ela ali, na mesma situação. Sentou-se no banco e, seguidamente, olhou para onde Julian havia surgido. A rua era pouco iluminada até uma altura; depois, era breu total. Olhou para o céu e imediatamente compreendeu o porquê de parecer que a praça estava tão iluminada. Não eram somente as luzes opacas da iluminação pública que a deixavam luminosa; era a luz da lua também.

“Nossa!” – pensou – “Que lindo!”

A lua brilhante clamava por atenção no céu estrelado. Grande. Luminosa, num tom azulado. Lua azul. Melanie tirou seu Mp4 do bolso, colocou os fones, deixando o volume bem baixo, no caso de surgir outro barulho por perto. Ouviu uma música, depois outra e uma terceira. Desligou o aparelho e tornou a guardá-lo no bolso. Nem suas músicas prediletas faziam-lhe companhia. Já estava a ponto de levantar e retornar à pousada quando ouviu o som mais horripilante de toda a sua vida. Entrou em seus ouvidos e atingiu o âmago do seu ser. Sombrio. Um uivo sombrio. Melanie levantou num rompante, seu coração acelerou tanto que teve dificuldade de respirar. O ser causador do uivo estava ao longe, mas sua presença era viva, fervilhando nas suas veias. Ela quis correr, mas suas pernas travaram. Quase tombou para trás. A sensação de que flashes de luzes circulavam-na voltou a acontecer. Piscavam ao seu redor e seguiam na direção do uivo, que agora se repetiu mais próximo e ainda mais congelante. O som das espadas também se fazia presente. Muitas espadas entrelaçando-se em um campo de batalha.
Melanie sentia-se perdida. Estagnada. Estava sozinha no meio da noite. Sentiu que um vulto aproximava-se, ofegante. Cada vez mais perto. Ela não conseguia nem mexer os olhos; parecia estar em um transe. Não podia gritar por ajuda. Não podia correr. Uma mão pesada caiu sobre o seu ombro.

- O que você está fazendo aqui?

Não conseguiu olhar para o rosto de quem a segurava, mas reconheceu a voz: Julian.

- Você não deveria estar aqui.

Melanie sentiu o corpo vascolejar.

- Melanie!

Ouviu seu nome, e um forte chacoalhar despertou-a do transe. Ela olhou para o rosto de Julian e procurou seus olhos; um gemido de pavor saiu da sua garganta quando os encontrou. Nunca havia presenciado olhos tão grandes. No centro, um vermelho tom de sangue envolvido pela escuridão. Outro uivo, agora bem próximo, ecoou sobre luminosidade azulada da lua. Julian ergueu a cabeça e farejou o ar, olhou para Melanie e apertou doloridamente seus braços.

- Você não pode ficar aqui. – esbravejou e empurrou-a na direção contrária ao uivo – Corra e não olhe pra trás.

A garota hesitou e começou a chorar. A voz de Julian, num tom mais grave, advertiu-a.

- Corra!

Com excessiva dificuldade, Melanie deu os primeiros passos. Ela não se atreveu a olhar para trás, mas sentiu que Julian agitava-se, grunhindo. Então, correu desesperadamente. Ao alcançar a quadra da pousada, ouviu novamente o uivo, agora seguido de outro. Entrou ainda em pânico pela janela e não se deparou com ninguém dentro do quarto. Possivelmente sua mãe ainda estava vendo TV, e Nicolas brincava com Raíssa.
Pôs-se debaixo das cobertas; tremia muito. Levou alguns longos minutos para começar a acalmar-se. Aos poucos, colocou o rosto para fora do cobertor e olhou por todo o interior do quarto. Quando seus olhos depararam-se com a janela, percebeu que a havia esquecido aberta ao entrar, afoita; quase esmoreceu. O vento soprava fracamente a cortina para dentro do quarto. Melanie prendeu a respiração, fechou os olhos num reflexo desesperador e, lentamente, foi posicionando-se na cama. Firmou um dos pés no chão e pareceu-lhe que assoalho de madeira não continha fundo. Custosamente ficou ereta e seguiu na direção da janela. Clamou silenciosamente pelo auxílio dos céus, ação que raramente fazia. Considerava-se autossuficiente nessas questões. Agora percebia que certos momentos acontecem para mostrar o quanto pensava e agia errado.
Não havia barulho algum do lado de fora. Os uivos tinham cessado. Só o vento e o cadenciado balançar dos galhos das árvores do quintal faziam-se ouvir. Mesmo assim, Melanie permanecia apavorada. Olhou para fora. Sabia que não devia, mas fez assim mesmo. Não avistou movimento algum fora do comum. Sentiu um impulso de fechar rapidamente as folhas da janela e trancá-las, mas se deteve. Curvou-se levemente com o intuito de observar as laterais da grande casa. Olhou para um dos lados e não viu nada. Refez o mesmo processo para o outro; e também nada avistou. Suspirou aliviada e colocou-se novamente para dentro do quarto.
Não existia ameaça alguma lá fora; concordou que já estava na hora de fechar a janela e esquecer o que acontecera. Quando as duas folhas estavam quase se juntando pela pequena fresta, ela avistou-o saindo das sombras. Imponente. Ele estava na calçada do outro lado da rua. A jovem menina sentiu, no momento em que seus olhos encontraram-se, uma ligação universal com aquele que a observava. Novamente aquela sensação apossou-se dela. Parecia que o quarto estava tomado por luzes que surgiam e desapareciam em segundos. A sinfonia das espadas em combate fazia-se presente. Mas, agora, não se sentia mais ameaçada. Melanie sabia quem era ele. Era o belo estranho do Gallardo vermelho. Mas o que ele fazia ali, parado, olhando fixamente para ela? Trajava um terno preto. Estava elegante. Cabelos negros brilhantes e com um tom azulado pelo brilho da lua que o tornava sedutor.
Mel não sentiu medo, apenas impulsionada a ficar observando aquele desconhecido pela noite toda, se necessário fosse. A única sensação sentida eram as batidas do próprio coração, que a conduziam ao excitamento de ficar admirada por aquele que, lá no fundo, trazia-lhe segurança. Mas seus pensamentos foram cortados pelo som nefasto do mesmo uivo sombrio que havia escutado minutos atrás. O estranho do lado de fora mexeu levemente a cabeça para o lado de onde o uivo tinha partido. Ela seguiu seus olhos que se projetaram na direção da lua. A imensa lua que reinava no céu. As luzes intensificaram-se ao redor de Melanie, e o som das espadas pareciam golpes dados com força brutal, golpeando sem pararem. O estranho olhou para ela novamente e acenou num gesto cortês em sinal de despedida. Ela não sabia o que fazer, apenas retribuiu acanhada o gesto. Ele recuou e desapareceu nas sombras. Melanie fechou rapidamente a janela e jogou-se debaixo das cobertas outra vez. Agora não temia mais pela própria vida, mas, sim, pela do belo estranho que acabara de despedir-se.

Capítulo Cinco - Angelique

Capítulo Cinco - Angelique

Havia os dois lados em residir numa localidade como Monte Seco. Julian e os seus familiares não eram bem-vistos pelos demais moradores do lugar. Existia um distanciamento proposital de ambas as partes. O garoto e os demais de sua numerosa família preferiam o isolamento; moravam em uma grande fazenda, com muitos hectares de terra, cercados por um muro e muitos mistérios. De tempos em tempos, novas histórias eram criadas sobre acontecimentos que envolviam um ou mais dos habitantes dali. Algumas eram boatos reciclados de casos antigos; outros, possivelmente verdades. Julian estava mais do que habituado a tudo isso. Não mais se importava de chegar a lugares e ver algumas pessoas saindo às pressas ou cochichando a seu respeito. Por outro lado, quase sempre o que acontecia em Monte Seco não saía dali. Isso era bom. Na situação em que viviam Julian e a família, jamais poderiam fazer parte de um grande centro.
A responsabilidade de suprir a família com o que faltava não era sua, mas, assim mesmo, Julian doava uma parcela do seu tempo para ajudar no que fosse preciso. A avó, Agnes, o havia incumbido de ir até a cidade mais próxima a fim de comprar para ela o tecido necessário para um novo vestido para Angelique, sua prima.
Angelique era uma garota bonita. Moderna algumas vezes e rústica em outras. Nascera com a cor negra nos longos cabelos lisos, mas os tinha em tom avermelhado no momento. “Fiz luzes.”, disse ela quando surgiu altiva na fazenda, depois de ter ido à capital. Vestia-se com roupas simples, como as demais mulheres da família. Roupas feitas por elas mesmas; mas, algumas vezes, quando sentia vontade, retirava as mais atuais, mais da moda, que mantinha guardadas e desfilava para si mesma diante de um espelho. Suas atitudes quase sempre geravam um sentimento de desaprovação dos mais velhos e de inveja dos mais novos.
Julian sabia o que aconteceria naquela noite; não poderia evitar. Por isso, precisaria estar dentro dos muros antes do pôr-do-sol. Teria que ir bem cedo à loja que a avó indicara para comprar o tecido. Tinha a hora marcada para pegar o ônibus e já estava atrasado. Angelique entrou sorridente em seu quarto. Lugar simples, com uma cama, um guarda-roupa pequeno e uma mesinha na qual Julian guardava alguns pertences. Tinha uma pequena coleção de bonés americanos dos Yankees, que nunca usava. Ficavam ali guardados, sobre a mesa. No porta-retrato, uma foto sua com os pais falecidos. Em uma foto menor, estava Julian, com uns três anos de idade, usando o primeiro boné do time de beisebol de Nova Iorque, dado pelo pai.

- Sabe qual cor trazer; não sabe? – perguntou Angelique.

Julian continuou vestindo a roupa sem responder.

- Não precisa me ignorar. – continuou a garota, cruzando os braços – Sei muito bem aonde o senhor vai.

- Não sei do que você está falando. – respondeu Julian.

- Azul ou verde-esmeralda.

- Azul ou verde-esmeralda o quê, menina?

- Não! Já sei, melhor... Hum! Deixa me ver... Prateado.

Julian balançou a cabeça, calçando os sapatos.

- Vermelho, não. Apesar de gostar da cor, eu já tenho muitos vermelhos.

- Já lhe disse, Angel, não sei do que você está falando.

- Vai dar uma de desentendido? Eu sei que a vovó o mandou comprar um presente pra mim. E nós dois sabemos que ela só sabe lhe pedir pra comprar tecido pra fazer um vestido. Todo aniversário é assim.

- Então, se você já sabe, por que está me chateando?

- Porque o que você comprou anteriormente era um corte horrível.

- Só segui as orientações que me passaram.

- Por isso, eu vou com você hoje.

Julian olhou fixamente para a prima.

- Não. – enfatizou - Vou sozinho.

- Não faça assim, cabeção! – disse a garota – Esse pode ser o seu presente de aniversário pra mim.

- Eu lhe compro outro presente. Não estou a fim de mais encrenca com o seu pai.

- Ele nem vai ficar sabendo. – insistiu Angelique – A gente vai e volta logo. Ele nem vai perceber.

- Vou falar só mais uma vez. – falou mais sério, colocando a jaqueta preta - Vou sozinho e ponto final.

Angelique colocou as mãos na cintura, sorrindo. Ela já sabia o que realmente iria acontecer.

O retorno em silêncio de Melanie tinha duas finalidades. Primeiramente, para evitar ter de explicar à mãe a razão do aparente stand by sofrido ao perceber Julian abraçado a uma garota de cabelos vermelhos. E, em segundo lugar, ponderar que, de repente, estava sendo um pouco exagerada em relação a ele. Afinal, acabara de conhecê-lo. Não sabia quase nada a respeito dele. Então, como poderia sentir ciúmes numa situação como essa? Mas, infelizmente, era o que realmente sentia.

- Hum! Problemas no planeta Melanie? – perguntou, provocando, Flávia.

Melanie não queria comentar nada, mas certamente a mãe continuaria a provocá-la até ela se manifestar.

- Não, mãe. Minha vida é perfeita.

- Não sei se você sabe, mas eu a conheço bem melhor do que você mesma se conhece. Por isso, sei quando você não está bem de verdade e quando está só de onda.

Ela olhou para a mãe, confirmando que se sentia como se estivesse perdida no meio do oceano, sem farol para orientá-la.

- Não esqueça que já estive no seu lugar. – continuou Flávia.

- Ah, não, mãe! Não vai começar com o discurso do “quando eu tinha sua idade”.

– Não é discurso, Mel. É troca de experiências. Possivelmente, eu não passei pelo mesmo problema por que você está passando, mas tive, sim, problemas para resolver.

- Eu sei. Mas tem coisas que, talvez, eu precise passar sozinha.

- Sim, concordo. Mas, se você pode contar com alguém que se importa, ajuda bastante.

Só uma atitude Melanie poderia tomar, naquela hora: dar um sorriso de agradecimento à Flávia. Afinal, a mãe sempre se manteve firme ao seu lado em situações adversas. Sempre fora seu farol.

A caminhonete da família aguentou muitas e muitas viagens até as cidades aos arredores de Monte Seco. Agora, a velha F-100 de guerra não dava ares de suportar mais uma. Devido a isso, ir de ônibus era a solução para que Julian fosse buscar o que não tivesse em Monte Seco, ou seja, quase tudo.
Foi uma tarde agradável em companhia da prima, mas desde que Julian viu aquela garota da cidade grande, não conseguia mais parar de pensar em seus lindos cabelos, esvoaçados pelo vento e trazendo às suas apuradas narinas o cheiro suave que pairava sobre ela. Tinha os olhos cheios de vida e carregava junto dela algo que Julian não conseguia identificar. Apenas o que ela guardava dentro de si despertava um domínio sobre ele. Julian até desejou procurá-la novamente, mas as tarefas da fazenda estavam tomando muito de seu tempo. Viu-a duas vezes depois do primeiro encontro, mas sempre de longe. Como já sabia que ela estava residindo na pousada, teve receio de aproximar-se, e ela o rechaçar. Talvez a garota já soubesse de uma ou até mais histórias que contavam a respeito de sua família. Seria melhor ficar com a ilusão de que ela, ocasionalmente, também pensava nele.
Horas depois, estavam os dois voltando da cidade vizinha. A sensação de observar as paisagens, que passavam rapidamente pela janela do ônibus, fazia com que Julian, por alguns instantes, esquecesse os acontecimentos que sobreviriam à noite daquele mesmo dia. Cada casa que ele avistava à beira da estrada fazia com que pensasse na vida normal que ele jamais teria. Seria maravilhoso viver em um lugar como aquele, sem se preocupar em esconder seus segredos, sem a possibilidade de trazer perigo a alguém, mesmo que involuntariamente. Poder conhecer uma pessoa como Melanie e dedicar-se a ela, sem a remota chance de fazer-lhe mal...
Eram quase cinco horas da tarde. Julian e Angelique desceram do ônibus, retornando da cidade vizinha. Ela carregava, feliz, um embrulho envolvido em papel de presente. Eles precisavam se apressar para retornarem o quanto antes à fazenda. Algum tempo depois, cansados, os dois chegaram à casa principal. Marcus, pai de Angelique, esperava do lado de fora. A garota já conhecia muito bem as expressões paternas. Sabia quando ele não estava contente com alguma situação. Essa era a sua expressão no momento, encarando o sobrinho.

- Onde você foi? – perguntou Marcus à Angelique.

Marcus era irmão de Cassius, pai de Julian. O garoto tinha conhecimento de que era um homem impiedoso, mestre da traição. Considerava Julian, assim como a seu próprio irmão falecido, um obstáculo a ser ignorado. Não gostava da aproximação da filha com o filho do irmão.

- Só fui acompanhar o Julian.

- Ele não sabe se virar sozinho?

- Claro que sim, pai. Mas, de vez em quando, eu gosto de sair desta cidade. Ver coisas novas.

- Da próxima vez, eu levo você para ver essas coisa novas, ou o Elias a leva.

Elias era o filho mais velho de Aurélio, braço direito de Marcus. E tinha a mesma idade de Julian.

- Não se preocupe. – disse Julian – Na próxima vez, eu vou sozinho.

- Será melhor para você mesmo, se cumprir o que está dizendo. Caso contrário...

Julian considerou melhor não revidar a provocação do tio. Estava cansado pela viagem, e a discussão não levaria a lugar algum, mesmo porque Marcus sempre encontrava um modo de provocá-lo. Nenhum dos três precisou falar mais nada, enquanto Julian e Angelique entravam na casa principal. Todos já sabiam, e muito bem, o que cada um pensava.
Quando Julian retornara à fazenda, no dia em que conhecera Melanie, Marcus sentiu o cheiro da garota no sobrinho e reconheceu, imediatamente, que ela trazia algo diferente, perigoso, que precisava ser combatido. Algo que, com certeza, Julian não percebera. E, naquela noite, era hora de pôr isso à prova.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Capítulo Quatro – Cidade dos Segredos

Capítulo Quatro – Cidade dos Segredos

Ao contrário dos primeiros dias e das primeiras horas vivenciados na pequena cidade, Melanie observava que o tempo parecia, teimosamente, correr mais depressa. Há alguns dias, deparara-se com um desconhecido e, agora, suas perspectivas já eram outras. Quanta diferença aquele sobretudo fez! Se fosse um rapaz do estilo gótico de cidade grande, vá lá. Mas um caipira desfilando em plena luz do meio-dia, como se estivesse no filme do Batman?! Com certeza, seria motivo para um comentário maldoso feito na rodinha de amigas quando voltasse. Mas era mais do que isso. O comentário, entre elas, poderia até acontecer, mas não seria engraçado. Melanie foi algumas vezes até a praça, em horários alternados e não teve a mesma sorte de, ocasionalmente, encontrar Julian. Sentou-se debaixo da sombra da árvore solitária e nada. Quando a mãe saía e, em seguida, retornava, Melanie ficava agoniada, temendo receber a notícia de que teriam de voltar. Não antes de, pelo menos, vê-lo uma última vez. Flávia aproximou-se da filha, que estava entretida olhando de novo pela janela.

- Eu vou ter que dar um pulinho na cidade vizinha. Quer ir comigo? Eu pago um sorvete.

“Um sundae!” - imaginou. Seria até uma boa oportunidade de reciclar os pensamentos.

- Ok! Estou dentro!

- É coisa rápida e, depois, só tenho que passar no mercado pra Dona Carmélia. Afinal, a mulher está me dando uma mão cuidando dos meus fedelhos enquanto eu resolvo minhas coisas.

- Ah sim, mãe! – afirmou Melanie - Como se eu desse trabalho.

- É. Realmente você não tem nem reclamado muito. O que é muito estranho.

- No caminho, vai me contar o que veio fazer aqui?

- Você nunca se interessou pelo meu trabalho. Por que, agora, esse interesse repentino?

- Bom... É que antes não precisei perder meus preciosos dias de férias!

- A proposta é simples. Vem comigo, e a gente faz um bom programão de mãe e filha. Que tal?

- Não me pressione, porque não sei se você notou, mas tenho milhares de coisas para fazer. Vou ter que desmarcar vários compromissos. – disse Melanie, sarcástica.

- Realmente, garota, você merece um dia de descanso. – respondeu Flávia, mais sarcástica ainda.

Melanie considerou que, naquele dia, realmente, a mãe estava espirituosa. Até que seria bom acompanhá-la.

- Ok, mocinha! Combinado. Vem comigo, então?

- Claro! Mas tem uma condição.

- Lá vem!

- Quero créditos para o meu celular. Preciso ligar urgentemente para minhas amigas. Tenho novidades. E outra: não posso perder contato com a civilização.

Flávia riu. Melanie sabia que isso era um “sim” e sorriu também. A mãe entendeu que, efetivamente, a filha precisaria desse mimo. Estava longe de casa, das amigas, da Internet e, como na pequena cidade não tinha sinal de celular, estava longe disso também. Para alguém da idade dela, isso era essencial.

A cidade vizinha parecia mais amistosa. Maior, pelo menos. Tinha mais do que apenas uma minúscula farmácia, ou um diminuto cubículo no lugar de garagem, que o proprietário denominava “mercado”. Ali, o mercado não era super ou hiper como os de Curitiba, mas era possível transitar no seu interior sem precisar esfregar-se, entre as gôndolas, com alguma senhora de ancas mais vistosas. Era um alívio. Flávia estacionou em frente ao estabelecimento.

- Esta aqui é a lista da Dona Carmélia. – disse Flávia, retirando um papel do porta-luvas e entregando à filha – Você poderia ir adiantando as compras, enquanto eu vou até o cartório.

- Nada disso. – respondeu quase que imediatamente Melanie – Vou com você.

Era a oportunidade de ter um pequeno vislumbre do que realmente contribuíra para sua mudança momentânea para Monte Seco.

- Assim a gente termina tudo mais cedo e volta logo, Mel. – continuou Flávia.

- Não, mãe. – prosseguiu Melanie – Eu vim com você até aqui para acompanhá-la por onde você for. Não vou ficar aqui escolhendo... – Melanie olhou a lista de compras – ...sabão em pó do mais barato.

Flávia mordeu os lábios e balançou a cabeça. Tinha consciência do gênio que a filha possuía. Era insistente. Teimosa demais, muitas vezes.

- Ok! Ok! – concordou Flávia, ligando o carro – Vamos nós duas juntas ao cartório.

Melanie não escondeu o sorriso de satisfação. Não por ter sido atendida, ou por ter se livrado de procurar pelo sabão mais barato e, sim, por receber a chance que esperava para desvendar alguns segredos que a mãe vinha escondendo. Isso parecia interessante. Instantes depois, o Fiesta quatro portas de Flávia estacionava em frente ao cartório. Melanie analisou o local enquanto entravam pela estreita porta de ferro, já quase totalmente tomada pela ferrugem. Lugar pequeno, abafado. Em outra situação, Melanie preferiria ficar no carro, ouvindo música, do que ter que entrar num local como aquele. Mas, agora, era diferente. Iria acompanhar a mãe e ficaria de olhos bem abertos, captando toda a informação que lhe auxiliasse no desvendamento do mistério. Um homem de meia-idade, magro, com óculos de lentes excessivamente grossas, demonstrou interesse em atendê-las. Melanie seguiu Flávia até o balcão.

- Bom dia! Posso ajudar? – falou educadamente o homem.

- Sim! – respondeu Flávia – Eu liguei ontem para cá e falei com uma pessoa. Deve ter sido com o senhor.

- Ah sim! – continuou o prestativo cartorário – Mas não consegui localizar o documento que a senhora mencionou.

Flavia fez uma expressão de desapontamento, imitada por Melanie.

- Como eu lhe disse ontem ao telefone, – continuou o homem – sofremos um acidente, alguns anos atrás. Nosso cartório teve boa parte dos seus documentos perdidos em um incêndio. Mas alguma coisa, mesmo pegando fogo, ainda foi possível resgatar. É possível que esse registro que lhe interessa esteja entre eles. Vou precisar de mais um tempo para tentar encontrá-lo. É preciso certo cuidado com o manuseio desses documentos.

- O senhor poderia me precisar um prazo?

- Mais alguns dias. Uma semana, quem sabe.

- Ta bom. Não tem outro jeito mesmo. Eu espero. Obrigada.

- Eu que agradeço pela sua paciência.

O homem sorriu educadamente. Um minuto depois, as duas já estavam na rua, entrando no carro. Melanie, nitidamente chateada, bateu a porta com força desnecessária ao entrar e sentar no banco do carona.

- Por que a birra? – perguntou Flávia, surpresa com a atitude da filha.

Melanie não respondeu, mas tentava também identificar o motivo que a deixara irritada. Seria por não ter descoberto nada sobre os segredos da mãe? Ou por saber que, em alguns dias, retornaria para casa e, assim, acabariam as suas chance de rever Julian?

“Meu Deus! Por que tudo o que eu penso tem a ver com esse cara agora?” - perguntou a si mesma. Mas Melanie já sabia a resposta. Sabia o que sentia por ele.

A lista que Dona Carmélia tinha passado para Flávia não era das grandes. Mas quase todos os itens continham a mesma recomendação: o mais barato. Mãe e filha encheram praticamente um carrinho com os pedidos da dona da pousada. Duranete esse tempo, Melanie aproveitou para ligar para algumas amigas, já que ali tinha sinal de celular. Flávia ria, ouvindo as fofocas serem despejadas repetidamente, a cada nova ligação. Parece que os bônus que a filha acumulara iriam dissipar-se naquela única tarde. Melanie divertia-se, e isso para Flávia era o mais importante. A filha estava rindo e feliz.
Quando chegaram ao caixa, Melanie prometera que aquela seria a última ligação e seria bem rápida. Só iria dizer um “oi” à amiga e editar os acontecimentos na hora de contar as novidades. Flávia concordou, já sabendo que não seria uma ligação tão breve como o prometido. Melanie começara a discar quando se deparou com uma imagem que a deixou perplexa. Loucamente desejava rever Julian, mas não ali, em outra cidade, e o que era mais degradante, rindo e abraçado a outra garota.
O que fazer quando os olhos revelam-nos algo que não estamos preparados para ver? Melanie sentiu-se enjoada. Enraivecida consigo mesma por depositar seus sentimentos, sua intenções, num rapaz como aquele. Por que se sentiu atraída por ele? Por quê? O que ele tinha de tão especial? Mel não sabia responder. Exceto que ele possuía uma namorada. Flávia percebeu que algo estava acontecendo. Ela podia ouvir a voz da amiga de Melanie dizendo, repetidamente, “Alô” ao telefone. A filha estava em outro mundo, concentrada em alguma cena do lado de fora do mercado.

- Tudo bem, filha? – perguntou, preocupada.

- Sim, claro. – respondeu Melanie, parecendo voltar de um transe hipnótico.

- O que aconteceu?

- Nada, mãe. Nada.

- Sua amiga está no telefone.

Melanie compreendeu que a amiga tinha atendido a ligação. E desligou imediatamente.

- Depois eu falo com ela.

Caminhando mecanicamente, ela seguiu para fora do mercado, dando tempo de analisar o casal que caminhava abraçado. Julian vestia uma jaqueta preta.

“Tirou aquele sobretudo horrível, pelo menos.” – pensou - “Mas continua com o mesmo mau gosto. – concluiu, avaliando a garota provinciana que usava roupas ultrapassadas e ostentava um longo cabelo avermelhado.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Capítulo Três – Julian

Capítulo Três – Julian


O garoto ficou parado quase uma meia hora, alheado, olhando para o horizonte. Em sua mente, irrompia a imagem perfeita: a linda menina, com seu All Star roxo, sentada debaixo da árvore solitária. Ainda em seus ouvidos, ele experimentava o som magistral de sua risada. Ela possuía uma fragrância peculiar, um cheiro que ele jamais havia apreciado.

- Está pronto, garoto. – disse o homem da oficina – Só levar.

Ele voltou a olhar para o interior da pequena oficina montada no quintal de uma casa e viu a velha caminhonete da família. O russo de dois metros e dezoito centímetros sorria, magnificente, ao lado da F-100 azul.

- Obrigado, Seu Carlos. – respondeu o garoto – Minha avó manda o dinheiro e o mel depois.

Esse conserto, assim como os das outras vezes, seria pago metade em dinheiro e metade em mel, produzido na fazenda em que o garoto morava.

- Não se preocupe. – respondeu o homem, batendo na caminhonete – Ela está firme como antes.

- Valeu, Seu Carlos. Por isso que a minha avó gosta muito do senhor.

- Mande um abraço pra ela. Só diga que não fui eu mesmo levar a caminhonete e fazer uma visitinha, porque não seria bem recebido... – o homem deu uma pausa – Você sabe por quem...

- Que é isso, Seu Carlos? Minha avó ficaria feliz em receber o senhor. Ninguém dessas bandas vai visitá-la; o senhor sabe.

- É. As pessoas daqui não a conhecem como eu. Levam suas vidas se baseando nessas histórias antigas.

- Eu sinto isso na pele todo dia.

O homem concordou com um aceno de cabeça, pondo fim na conversa.

O garoto Julian dirigia a velha, mas firme, F-100, pelas ruas de terra que dariam na fazenda onde morava com a avó e seus outros familiares. Wladmir, o gigante, ficava sempre na carroceria, por dois motivos: era muito mais confortável para suas longas pernas e porque amava sentir o vento fresco no rosto. O vento era o único toque de carinho que recebia. No seu país, o vento congelava; quase quanto o olhar das pessoas.
Julian conhecia aquelas curvas da estrada de cor, desde menino transitava por elas. Mas não era esse o motivo pelo qual dirigia quase que automaticamente; era por não parar de pensar na garota de quem nem mesmo sabia o nome. O rapaz olhou pela janela traseira da caminhonete e viu Wladmir rindo sozinho, recebendo o vento no rosto.

- Me responda, Gigante... – disse Julian - Como alguém pode saber quando está diante da garota da sua vida? Daquela que não existe outra igual?

Wladmir encolheu os ombros. Definitivamente, não saberia responder ao garoto. Ele nunca tinha feito uma pergunta desse assunto para o russo.

- Wladmir não saber responder. – disse, sincero, o russo.

- Mas você nunca esteve diante de uma garota que você nunca tinha visto antes e sentiu o mundo parar? – disse Julian.

Wladmir abaixou os olhos. Tinha sentido algo semelhante uma vez, na Rússia. Mas seu tamanho desproporcional, somado ao seu rosto disforme, não permitira que sua amada sentisse o mesmo. Apesar de compreender o que Julian estava tentando dizer, ele não saberia transformar em palavras.

- Fala pra mim, Gigante. – continuou Julian – É normal isso que eu estou sentindo?

- Já disse não saber.

- Me dá uma luz. – disse Julian, olhando para trás – Você é único com quem posso falar essas coisas.

- Mas, garoto, nunca falar antes essas coisas com Wladmir.

Julian pensou por alguns instantes.

- Tem razão, amigão. – completou Julian – É que isso é novo pra mim também.

Julian avistou o grande portão que dava acesso à fazenda da família. Estava na hora de voltar à rotina de sempre. Mas, amanhã, seria outro dia e poderia voltar até aquela árvore. Quem sabe a garota de cheiro agradável estaria sentada debaixo de seus galhos?

Um singelo canto de pássaros próximo à janela. Foi isso que acordou Melanie naquela manhã. Para quem dormia sem se incomodar com barulho dos motores de ônibus. Afinal, já chegaram a morar quase ao lado de um terminal rodoviário. E, toda a manhã, aquela correria de pessoas transitando, falando alto, xingando o motorista, distribuindo-se para lá e para cá, e até os insuportáveis alarmes, quando se usa a ré nos ônibus, já fizeram parte da trilha sonora dos sonhos de Melanie.
Procurou o celular para ver as horas e notou que estava sozinha no quarto. Na verdade, depois de alguns dias, já se acostumava ao novo habitat. Velho e com coisas velhas, assim como o restante de tudo na pousada. Bem diferente do seu quarto. Não que ele fosse uma maravilha, mas, pelo menos, tinha a sua cara. Sonolenta, ela concluiu que os outros dois membros da família deviam ter acordado há tempo. Apesar de não saber que horas eram, sentiu que dormira muito, como se fosse por quase toda a sua juventude. E dormir é o que mais fazia nesses dias, considerando que não havia nada para se ocupar naquela cidade. A TV pegava apenas o canal de novela e com uma imagem, quase sempre, indefinível. A rádio FM de uma das cidades mais próximas só tocava música sertaneja. As pessoas, então, sem condições de interação. Até as da sua idade, as poucas com quem manteve contato, não caberiam no seu círculo de amizades. Não que ela se imaginasse chata, no sentido de renegar alguém de ser meu amigo, mas as próprias pessoas não cediam muito para aproximação. Certo dia, tentara puxar papo com a menina que morava na casa ao lado da pousada. Ariela, a garota do mercadinho. Mas ela nem sequer a respondeu corretamente. Raíssa disse-lhe que era por Ariela sentir-se mal por ser gordinha. Melanie não ligava para isso. Tinha uma amiga assim na escola. E aqueles dois estranhos, então? O cara grande e o garoto sem camisa. Bom, pelo menos o garoto ficou encarando-a. De repente queria até fazer amizade, mas não falou nada, e Melanie sabia que, em se tratando de garotos, era muito tímida. Não seria ela a puxar papo.
Então, só lhe restava ficar no quarto, fechada, ou lendo os mesmos dois livros que trouxera. Melanie já tinha acabado “Razão e sensibilidade” e lia, novamente, “A menina que roubava livros”. Ou relia os livros mais uma vez, ou o que era mais triste, ficaria olhando pela janela, por horas, na direção de casa. Tomou um banho demorado e trocou de roupa. Ficou paralisada diante do espelho, olhando a si mesma, tentando imaginar um átimo do que o futuro poderia lhe reservar. Desembaraçou mecanicamente os longos cabelos, o brilho que provinha dos seus olhos castanhos não era o mesmo de antes; ela definitivamente era uma garota de cidade cosmopolita. Desceu imaginando as possíveis outras caras que teria de encarar e cumprimentar. Afinal, a pousada contava com outros hóspedes. Se pudesse, ficava no quarto o dia todo. Quem sabe fosse até uma boa ideia dar meia-volta, mas seu estômago não iria concordar e também desejava saber o que estariam fazendo a mãe e o irmão.
Antes de entrar na cozinha, percebeu que a foto que tinha observado na véspera não estava mais ali; fora substituída por uma mais recente da menina Raíssa. Melanie não conseguiu imaginar o que teria acontecido. Entrou na cozinha e percebeu o homem careca, que sempre mantinha a gola da camisa polo abotoada até em cima, concentrado, lendo um jornal. Dona Carmélia estava onde se podia apostar que uma senhora igual a ela ficaria: ao fogão, já iniciando os trabalhos para o almoço. Pensou em perguntar sobre a foto, mas não o fez. Considerou melhor indagar quando Dona Carmélia estivesse sozinha. Do outro lado da mesa, Nicolas e Raíssa perceberam sua presença.

- Até que enfim, dorminhoca. - falou Nicolas.

“Se estivéssemos sós, ele iria ver quem é a dorminhoca.” - pensou Melanie; mas apenas se limitou a fulminar o irmão com o olhar.

A senhora idosa olhou para trás e, sobre os óculos, encarou-a. O careca nem se mexeu.

- Bom dia! Quer café, criança?

“Criança. Detesto quando ela me chama assim.” – pensou mais uma vez Melanie.

- Criança não, vó! – exclamou a menina Raíssa – É Melanie! - a garotinha inclinou-se na direção da avó e, colocando uma das mãos no canto da boca, sussurrou - Ela não gosta que a chamem assim.
Dona Carmélia percebeu a interrogação no rosto de Melanie sobre as atitudes da neta.

- Raíssa, vai brincar lá fora. – disse a mulher.

A menina bufou e saiu, seguida por Nicolas. Dona Carmélia colocou uma xícara na frente da jovem.

- Pode se servir.

Ela apontou uma garrafa térmica sobre o centro da mesa, que estava quase toda ocupada por pães, bolos, broas e demais quitutes que possivelmente não seriam tão apreciados por Melanie como foram na primeira manhã.

- A senhora sabe da minha mãe?

- Ela saiu faz um tempinho. Disse que iria resolver algumas coisas importantes.

Melanie tomou seu café silenciosamente. Evitando até de fazer o barulho da xícara repousando no pires. Quem sabe, assim, ninguém falaria com ela. Foi mais rápida do que de costume e saiu. Passou rapidamente pela área de entrada e seguiu até o portão; não queria ouvir a voz de Nicolas, nem de sua nova amiga. Quando chegou à rua pensou: “Ou saio para dar uma volta por aí, ou retorno pra clausura que é aquele quarto.”
A rua que passava atrás da pousada era a principal da cidade. Foi por ela que seguiu até chegar à pracinha. Cruzou com poucas pessoas pelo caminho. Todos a olharam com certa curiosidade contida. Ficou esperando que alguém lhe cumprimentasse; ninguém se preocupou em fazê-lo; então, ela também não. Sentou no único banco que não estava totalmente quebrado. Colocou seus cotovelos sobre as pernas e ficou imaginado quando aquela bola de vegetação, que o vento carrega no deserto, iria passar pela sua frente.

“E se eu for até aquela árvore?” – pensou, entediada – “Não. Vou ficar aqui mesmo.”

O que faz uma pessoa se interessar por outra? E quando isso acontece inesperadamente, o que está por trás?
Melanie era uma garota que nunca acreditara em coincidências. Para tudo existe um porquê, ela pensava. E, talvez, estivesse certa. Menos de dez minutos depois, foi só ela desviar seu olhar, por instantes, para outra direção que algo chamou a sua atenção. Era quase meio-dia, o sol reinava absoluto no céu. Ela sentia o suor sobre a sua testa. Então, não foi capaz de avaliar a razão pela qual aquele homem seguia solitário, na sua direção, vestindo um longo e pesado casaco preto. Ela procurou o adjetivo mais infame possível para classificá-lo, mas não conseguiu. Com um sol escaldante daqueles, quem ousaria trajar uma roupa pesada como essas?

“A gente vê cada coisa neste mundo!” - pensou.

Achou melhor olhar novamente para o encasacado antes que ele estivesse bem perto, assim poderia rir da cara dele em seus pensamentos depois que ele passasse por ela. Olhou com o canto dos olhos, e ele estava mais perto do que ela havia suposto. Na verdade, bem perto. Moveu a cabeça rapidamente para o outro lado e permaneceu assim. Sentiu-se incomodada de repente. Não pelo fato de ser uma pessoa totalmente estranha que passaria em sua frente. Ela poderia fingir que se concentrava em alguma cena e ignorar. Mas algo diferente, angustiante, realmente mexeu com a menina.

- Olá!

Sentiu a voz do encasacado bem junto dela. Olhou na direção dele e o viu parado quase à sua frente. Era o garoto que acompanhava o homem grande. Notou que ele estava sem camisa, de novo, debaixo do casaco. E só depois vislumbrou o seu rosto. Era jovem, imberbe e não deveria ter mais do que 20 anos. Seus olhos tinham uma tonalidade diferente, quase como um cinza-claro. Certamente era bonito, daqueles de encher os olhos. Possuía um magnetismo, evidenciado pelo sorriso cativante que se somava ao estilo incomum que possuía. Melanie imaginou-o na escola, no primeiro dia de aula. Mas não vestido do jeito que estava agora. Se estivesse com uma calça jeans, mesmo que surrada, e uma camiseta qualquer, aí sim, causaria suspiros em Melanie e em seu grupo de amigas. Mas ele estava ali, somente diante dela, esperando uma resposta.

- Oi. – respondeu Melanie, mas sua voz quase não saiu.

- Você tem horas aí? – perguntou o desconhecido.

“Muito original!” – ironizou Melanie em seus pensamentos.

- Tenho! - respondeu a garota pegando o celular no bolso de trás – Faltam vinte pro meio-dia.

- Hum. – ele pronunciou, ficando em silêncio alguns instantes como que procurando alguma palavra para dar sequência à conversa.

Melanie limitou-se a ficar olhando para o display do celular.

- Eu sou Julian.

Ela viu sua mão estendida em sua direção. Hesitou um pouco, mas a apertou.

- Melanie. - revelou a garota, enquanto soltava, tímida, a mão do rapaz.

- Eu a vi embaixo daquela árvore depois da estrada. – disse ele, na tentativa de continuar a conversa. – ela apenas moveu a cabeça - Vai ficar muito tempo na cidade?

Mel respondeu negativamente, de novo com um aceno de cabeça.

- Vai morar aqui? – insistiu o rapaz.

“O que é isso? O cara é do FBI? Vai ficar me interrogando?” - pensou Melanie.

- Por uns dias. – respondeu ela, imaginando um “infelizmente” no fim da frase.

- Então, seja bem-vinda a Monte Seco.

Pela primeira vez, ela sentiu-se encorajada e olhou fixamente na direção do seu rosto. Encontrou seus olhos, encarando-a.

- Obrigada. - respondeu ela agora, ainda atônita com a sensação desconfortável que estava sentindo. Sempre passava por isso, justamente quando alguém chamava sua atenção.

- Está na pousada?

- Sim.

- Eu moro naquela direção. – apontou para onde havia vindo – Uns dois quilômetros mais ou menos. Saindo da estrada. Depois do velho seminário.

Ela esboçou um leve sorriso como que entendendo a explicação.

- Você parece incomodada com alguma coisa... – continuou Julian.

Melanie esboçou mais um sorriso sem graça.

- Bom. Já vou indo. – disse Julian, desapontado - Desculpa se incomodei você.

Melanie percebeu o quanto estava sendo hipócrita. Desde que chegou, só sabia reclamar dos habitantes do lugar, considerando-os antissociais. Agora, estava agindo da mesma maneira e justamente com a única pessoa que quebrara essa regra. Mas não o fazia por mal; sentia-se desconfortável nos primeiros contatos com rapazes desconhecidos. Ela precisaria passar por cima da timidez e tratar convenientemente o rapaz.

- Não. Eu que peço desculpas. – disse Melanie, levantando-se.

– Não se preocupe. – completou, sorridente, Julian - Às vezes eu falo demais.

- Isso é bom, já que por aqui ninguém costuma usar o dom da palavra.

- As pessoas são muito caladas, realmente. Mas isso é o que, geralmente, acontece em cidades como essa. As pessoas são mais reservadas.

- Então... Estou há alguns dias aqui e já estou agindo assim.

- Cuidado! Logo você estará falando “Ô, de casa” ou “Ô, diacho”.
Melanie riu, contida. O rapaz, além de bonito e educado, parecia ter bom humor. O melhor atributo para um homem, considerava ela. Ele percebeu o seu sorriso e encarou-a profundamente; parecia que queria penetrar na sua mente.

- Bom... Preciso ir agora. Estou indo até o mercadinho. – falou Julian, imaginando ser melhor não chatear mais a garota, para não perder a oportunidade de falar com ela em outra hora - Até depois.

- Até depois. – respondeu ela, desviando o olhar.

Julian analisou-a por inteiro, mais uma vez, e saiu. Melanie observou-o, retornando ao caminho anterior. Ela demorou a perceber que, apesar do calor, estava com as mãos congeladas. Ficou de cabeça abaixada por alguns segundos e, lentamente, olhou na direção de onde ele seguia. O rapaz caminhava com um porte ligeiramente elegante, como se flutuasse sobre o chão. Ela acompanhou-o com o canto dos olhos até ele desaparecer no fim da estrada.

Melanie já estava de volta à pousada. Olhando no espelho, ela sabia que havia ficado impressionada. “Até depois.”; foram as últimas palavras do rapaz. Ficou imaginado quando isso seria. Passou toda a tarde pensando no estranho, que usava um sobretudo, no auge do calor do dia. Ele disse-lhe seu nome: Julian. Mais do que tudo, ficou impressionada consigo mesma, normalmente esse era o tipo de rapaz que não a atrairia. Era bonito e atraente, mas geralmente se entendia bem com os menos bonitinhos. Não tinha tanta pressão sobre eles, e ela não precisaria disputá-los com a miss escolar.
Por volta das três da tarde, Flávia retornou. Melanie, como sempre, estava absorta, debruçada sobre o peitoril da janela. Agora não mais depositava sua atenção na direção da cidade onde morava e, sim, na direção da pracinha em que conhecera Julian.

- Roendo as unhas de novo, menina? – alertou Flávia, percebendo Melanie concentrada na janela – Pare com isso; já lhe falei. Vai comer todos os dedos assim.

Melanie tirou o dedo da boca. Realmente tinha esse hábito horrível.

- De novo trancada neste quarto, menina? – repreendeu-lhe, mais uma vez - Vai definhar assim.

- Já saí. – respondeu Melanie - Fui dar uma volta hoje de manhã.

- Hum! Bom sinal. Alguma surpresa?

- Comigo não. E com você?

- Se está me perguntando o que eu fui fazer, – respondeu Flávia, jogando-se na cama – fique calma que já está tudo se resolvendo, e já estaremos sumindo daqui. – a mãe dera ênfase, prolongando ainda mais no “sumindo”, somado a um gesto de decolar, como se eles fossem sair dali de avião.
Melanie analisou aquelas palavras. Era tudo o que ela desejaria ouvir. Antes, obviamente, daquela manhã em que, enfim, decidira sair. Algo mudou sua vontade urgente de partir: Julian.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Capítulo Dois – Carpe Diem?

Capítulo Dois – Carpe Diem?

Melanie sabia que a mãe não tolerava dirigir à noite, nem quando chovia. Eram quase dez horas; chovia forte, e elas estavam no interior do Fiesta, na estrada. A garota recebia no próprio corpo toda a tensão que sua mãe sentia ao se concentrar no pequeno vislumbre da rodovia, possível através da densa camada de água que escorria pelos para-brisas. Estava no banco do passageiro, fingindo-se tranquila, ouvindo música em seu Mp4. Mas, por muitas vezes, apertou o pé contra o carro, como se fosse ela mesma que estivesse dirigindo. A mãe mostrava-se muito concentrada para notar isso; aliás, Melanie considerava que, já há muito tempo, ela não vinha notando muito do que a filha fazia. Estava para sair de mais um emprego. O quarto, em menos de dois anos. Flávia sempre demonstrou ser irrequieta, contrastando com o jeito passivo de Melanie. Mas, dessa vez, a garota pressentia que algo não ia bem; só não sabia o que.

- Tenho que ir para outra cidade. Preciso resolver algumas coisas, mas é por pouco tempo. Preciso que você e Nicolas entendam. – Melanie relembrava o que dissera a mãe, enquanto assistiam à novela, naquela noite.

“Como eu posso entender? E os meus planos? E as coisas que eu teria que resolver? Como ficarão?” - pensou Melanie ao lembrar a conversa.

“Que m...” – pensaria em um palavrão quando ouviu um ainda pior da boca da mãe. Sentiu os solavancos. Ela havia saído da estrada outra vez e quase batera em um barranco. Tirou os fones e tentou parecer natural, apesar de estar com muito medo. A mãe olhou-a, rapidamente, com aquele olhar querendo dizer:

“O que foi? Falei! E daí? Eu posso; sou sua mãe.” - mas disse outra frase:

- Mel! Veja aí como está o seu irmão.

Melanie olhou para trás e constatou que Nicolas dormia pesado.

- Está bem! – respondeu Melanie – Para variar, está dormindo.

Flávia ouviu e continuou concentrada. A luz forte de outro carro que seguia na direção contrária cegou Melanie por alguns instantes. Instintivamente, ela colocou as mãos sobre os olhos.

- Eu sei que está cansada também. – disse Flávia, sem tirar a atenção da estrada – A gente já está chegando.

Ela pareceu hesitar, e Melanie percebeu. A garota ficou em silêncio. A mãe tentou alcançar seus pensamentos, examinando-a com o canto dos olhos.

- Entendo que você está chateada por toda essa viagem repentina. – continuou Flávia – Mas eu precisava mesmo fazer isso. E, afinal, já estamos aqui. Não dá mais pra voltar. Pelo menos, não por enquanto.
Melanie continuou em silêncio, engolindo muitas palavras que gostaria de dizer. Mas sabendo que em algo, realmente, a mãe tinha razão. Não dava mais para voltar.

- Quem sabe você até gosta de lá... – prosseguiu Flávia – Vai ser por poucos dias. Além do mais, é muito bonita a cidadezinha.

“Cidadezinha”. Isso fez Melanie lembrar-se de certa vez, quando ainda devia ter a idade do irmão. Uns oito ou nove anos, talvez. E ouviu o nome daquela cidade pela primeira vez. Monte Seco. Lembrou, porque riu ao ouvi-lo, achando-o engraçado. A mãe, na época, falava com alguém no telefone também. Melanie não sabia quem era. Depois de algum tempo, ela começou a ficar irritada e repetia em tom áspero que jamais voltaria a pôr os pés em Monte Seco. Jamais. Depois disso, nunca mais ouviu a respeito. Até um dia atrás, quando soubera que a tal cidade de nome engraçado não mais parecia tão engraçado assim.

- Não consigo entender uma coisa... – resmungou Melanie – Por que nós vamos pra esse fim de mundo?

- Já lhe falei. Eles precisam da minha presença por lá, pra resolver algumas coisas. - respondeu ela - Fique tranquila, pois quando tudo se acertar, em seguida a gente dá meia-volta. Arrumei um lugarzinho bem família pra ficarmos. Vai ser bom pra vocês também.

- Nada disso. – respondeu Melanie, no ato - No que isso vai fazer bem pra mim?

- Vai sim. Você vai ver.

- Claro! Vou ver as minhas férias afundarem. Eu bem que poderia ter ficado na casa de uma das minhas amigas.

- Meu Deus, Melanie! Você está parecendo uma criança mimada. - Flávia olhou rapidamente para a filha e voltou a concentrar-se na estrada – Eu sei que você não é assim.

Melanie sabia que nisso Flávia também tinha razão; ela não era de agir assim. Tinha mais consciência e juízo do que muitas de suas amigas. Mas essa reviravolta repentina, além de mudar seus planos, fez com que mudasse. Ficou mais amarga. Mais triste.

- Como as aulas ainda vão demorar uns dias pra começarem, vocês dois vão ter tempo de sobra pra conhecer a cidade e fazer novos amigos antes de voltarmos. - Flávia parou bruscamente de falar, percebendo o desinteresse de Melanie na conversa - Por que não tenta dormir? – prosseguiu.

- Não vou conseguir.

A mãe colocou a mão sobre a perna da filha e logo a retornou ao volante.

- Tá bom. – suspirou, não conseguindo esconder a tensão – Só continue prestando atenção no seu irmão.

Melanie percebeu, nesse instante, que, além de estar preocupada com o perigo da estrada, a mãe também sentia medo. Algum problema tirava a paz de Flávia; e ela demonstrava não querer dividir com ninguém o que a estava preocupando. Tinha também outro agravante; recaía sobre ela a responsabilidade de as coisas darem certo novamente. Se seus planos não correspondessem, teria que procurar outro emprego quando retornassem.

Nas próximas quase duas horas que se seguiram, Melanie permaneceu em silêncio, ouvindo as poucas palavras esboçadas pela mãe, a respiração do irmão no banco de trás e o barulho da chuva que diminuía gradativamente, até cessar por completo. Pararam em um posto de combustível, e Flávia não demorou a descer para pedir informação, colocar gasolina e comprar alguma comida para comerem. Nicolas acordou.

- A gente já chegou? – perguntou ele, bocejando.

- Ainda não.

- Falta muito?

- Acho que não. Mamãe foi ver.

- Será que fica muito longe? - repetiu a pergunta.

- Não sei, garoto. - Melanie esbravejou.

- Quero ir ao banheiro.

Melanie lembrou-se de quando se mostrava mais atenciosa no cuidado do irmão. Ao contrário de muitas crianças que ficam enciumadas com o nascimento de um irmão mais novo, ela amou-o desde o primeiro dia. Apesar de, ultimamente, ele estar se tornando um peso, ela, assim mesmo, amava-o sem medidas. Fazendo o papel de irmã mais velha, a garota olhou para a porta de onde, supostamente, seria o banheiro; estava semiaberta. Era perto do local em que seu carro estava estacionado.

- Desce e vai lá. – apontou a direção - Só não demore.

Nicolas abriu a porta do carro e seguiu até o banheiro, arrastando os braços, parecendo um pouco arqueado pelo sono. Ele sempre fazia isso toda manhã; era sua marca registrada. Melanie observou-o entrar no banheiro e olhou para a loja de conveniência na tentativa de avistar a mãe. Não a viu. Provavelmente, ela estaria comprando comida ou conversando com o atendente. Encostou a cabeça no vidro e fechou os olhos. Instante depois, sentiu a cabeça pendendo para frente e segurou-se para não dormir; não havia percebido o quanto estava cansada. Seu corpo doía, os olhos pesavam. Quase adormecia quando foi tomada por uma sensação que nunca antes havia experimentado. Como um choque, uma corrente elétrica envolvia-a por inteiro. Acordou de sobressalto, olhou na direção do banheiro em que Nicolas estava e viu flashes de luzes saindo pela fresta da porta. Era estranho, como se fosse o flash de muitas máquinas fotográficas ao mesmo tempo. Olhou à loja de conveniência e não viu sua mãe. Desceu cambaleante do carro, as luzes continuavam dentro do banheiro. Melanie notou que uma placa de publicidade, que anteriormente se agitava histérica pelo vento, agora estava parada. Nem vento mais tinha, nem barulho de nada; tudo se mostrava muito quieto. Seguiu para o banheiro e só conseguia ouvir o barulho dos próprios passos; tinha a impressão de caminhar em slow motion.

- Nicolas!

Chamou pelo irmão antes de entrar. Ele não respondeu. Aproximou-se da porta e, devagar, foi abrindo-a. As luzes intensificaram-se. Melanie morria de medo, mas precisava entrar. Podia ouvir o bater acelerado do seu coração. Tremia. Entrou chamando por Nicolas de novo e não ouviu resposta. Então, escutou algo indescritível, talvez como se muitas espadas travassem uma disputa. As luzes eram muito fortes e piscavam intensamente. Segurou-se na parede para não cair e gritou:

- Nicolas!

Tudo girou ao seu redor. Ela sentiu suas pernas bambearem.

- Não tema!

Uma voz suave, quase inaudível, sussurrou levemente em seu ouvido. Sentindo como se fosse desmaiar, Melanie teve a percepção de que algum ser sobre-humano amparava-lhe, encostando-a à parede. Tentou olhar ao redor e verificou que estava bem escuro; as luzes haviam cessado. Sentiu alguém passar e esbarrar em seu corpo combalido, mas não conseguiu identificar o que era; apenas viu o vulto saindo pela porta.

- Mel!

Ela ouviu a voz do irmão enquanto se recuperava, escorando-se na parede.

- É você, Nicolas? – perguntou ela, ainda bastante zonza.

- Claro que sou eu.

Nicolas veio ao seu encontro. Melanie já podia vislumbrar os olhos inocentes do irmão. Ele abraçou-o, e os dois saíram do banheiro.

– Estava muito escuro lá dentro. Aquele homem ali ficou comigo pra eu não ficar com medo. – Nicolas apontou em direção a uma caminhonete velha que estava estacionada. Deu tempo de Melanie ver o homem que entrava nela.

- Quem é aquele homem?

- Eu não sei. Ele estava lá dentro. – respondeu Nicolas - Ele perguntou um monte de coisas pra mim.

Ouvindo um barulho de motor, Melanie olhou de novo para onde estava a caminhonete; o homem encarou-a e, mesmo um pouco distante, ela conseguiu ver a negritude dos seus olhos. Ele sorriu. Era um sorriso sarcástico. Acenou na direção deles e saiu para a estrada.

- Você já sabe, Nicolas. Não pode falar com gente que você não conhece. É perigoso.

- O que é perigoso?

Flávia chegou e escutou apenas o fim da frase. Melanie compreendeu que não deveria falar nada à mãe, pelo menos, não por enquanto. Percebeu que, se falasse sobre o episódio do banheiro, Flávia iria querer sair atrás de polícia, ou pior, do próprio homem da caminhonete.

- Lugar escuro, mãe. - Melanie tentou contornar – O Nicolas queria fazer xixi no banheiro. - ela olhou para Nicolas para que ele concordasse com a história - Estava escuro lá dentro. Aí, falei pra ele fazer ali no cantinho mesmo.

Nicolas acenou com a cabeça, dando crédito à narração da irmã, Flávia não acreditou muita na história, mas fez sinal para que entrassem no carro. Os filhos obedeceram, e ela também entrou segurando uma sacola, que pôs sobre o colo de Melanie, enquanto colocava a chave na ignição.

- O rapaz me falou que faltam menos de três quilômetros de asfalto e mais uns cinco de estrada de chão por um desvio, e chegamos.

Melanie abriu a sacola plástica e viu bolachas, chocolates e refrigerantes.

- Eu sei o que você está pensando. - disse Flávia, dando a partida e colocando a marcha – Mas hoje eu faço uma exceção. Podem comer essas bobagens. É só isso que eles tinham lá mesmo.

Instantes depois, eles já estavam novamente na estrada. Só que, agora, Melanie refletia e considerava que sua mãe havia se enganado. Ela realmente olhava para o interior daquela sacola, mas, na verdade, o que ela pensava era sobre tudo que acontecera há pouco, no banheiro.

O carro foi parando. Isso fez com que Melanie despertasse. Abriu com dificuldade os olhos e ainda deu tempo de ver a mãe estacionar. Olhou para trás, e Nicolas encarou-a sorrindo.

- Chegamos. - disse o garoto, parecendo realmente não se importar por toda a mudança pela qual estava passando.

– Já era hora. - respondeu Melanie, tentando identificar onde estavam.

- Vamos ficar aqui esses dias. - disse Flávia, apontando para uma casa grande e velha.

Melanie olhou com desapreço para o lugar. Pareceram-lhe aquelas pousadas administradas por velhas senhoras, com cara amarrada e olhar desaprovador a tudo que o hóspede faz, principalmente os da idade dela e do irmão.
- Vamos descendo. – sugeriu Flávia – Porque, amanhã, vai ser um dia muito cheio, e precisamos descansar um pouco.

Desceram e seguiram em direção à entrada. Flávia carregava uma pequena bolsa com documentos e roupas. Passaram em silêncio pelo portão e continuaram até a porta da pousada. Era uma casa enorme de madeira e, apesar da pouca luminosidade, Melanie notou que fora pintada com um verde-musgo que a deixou ainda mais desagradável. Ostentava uma área que se estendia por toda a frente. Alguns poucos vasos pendurados com samambaias eram os únicos enfeites. A porta de entrada era grande, e seu tom amarronzado ajudava a denunciar o mau gosto do proprietário do local. Ouviu-se o barulho da chave sendo girada. Melanie olhou na direção da fechadura e concluiu que, com certeza, sua fabricação não era deste século. A porta abriu lentamente, e o rosto sorridente de uma menina, de uns seis ou sete anos, apareceu.

- Dona Flávia? – perguntou a garotinha.

- Isso mesmo! – respondeu ela, retribuindo o sorriso.

- Oi! Eu sou a Raíssa! Fizeram uma boa viagem? - a menina escancarou a porta – Minha avó está esperando vocês.

A menina deu as costas e entrou. Olhando para Flávia, Melanie identificou o motivo do seu leve sorriso de contentamento. Possivelmente, a mãe estaria fazendo comparações em sua mente. Era o que sempre costumava fazer quando se deparava com uma garotinha precoce. Pelo que Melanie sabia, e a mãe não a deixava esquecer, ela já fora espontânea e prodígio desse jeito, uma Lisa Simpson.
Entrando por último, Melanie perguntava-se que assuntos teriam a mãe para resolver numa cidade como aquela... Não poderiam ser resolvidos por telefone? Por e-mail, quem sabe? Correu os olhos pela grande sala de entrada. Móveis antigos, quadros antigos; tudo antigo. Uma TV pré-histórica, daquelas que parece preto-e-branco, estava desligada no canto. Se a TV era assim, computador, então, se existisse um por ali, é claro, deveria funcionar à manivela. Melanie olhou para o sofá coberto por uma capa com estampas florais, e este pareceu exercer sobre a jovem uma força de atração muito grande. Vencida, ela sentou-se pesadamente no desconfortável estofado, cruzou os braços e paralisou os músculos do corpo, permanecendo inerte. Flávia e Nicolas adentraram pelo corredor que levava aos demais cômodos da casa, seguindo a efusiva Raíssa. O que uma menina na idade dela estaria fazendo acordada até aquela hora? Na verdade, isso não interessava à Melanie. Afinal, agora, ela só nutria o desejo de dormir. Seus olhos pesaram novamente, e ela foi soltando-se vagarosamente no sofá, encostando a cabeça na lateral e recolhendo as pernas sobre ele. Fechou os olhos.

- Não tema!

Melanie deu um sobressalto e sentou-se no sofá. Seu coração disparou; ela não soube discernir se ouvira aquela mesma voz suave sussurrar no seu ouvido novamente, ou se apenas lembrou o momento em que a vivenciara naquele banheiro do posto de gasolina.

- O que foi?

Ela olhou na direção de onde partiu a voz infantil que agora a indagava. Raíssa, com a cabeça levemente inclinada para o lado, depositava-lhe os olhos azuis inquisidores, fixados nela.

- Nada! - respondeu Melanie, sem ainda compreender o que sentira.

A garotinha sorriu, e Melanie notou a perfeição dos seus dentes. “Pelo menos, eles devem ter dentista na cidade.” – pensou Melanie.

- Aqui não! Mas tem um que vem toda a semana. Dr. Marcos. – disse Raíssa, enquanto olhava a garota deitada sobre o sofá. Depois meneou a cabeça e saiu saltitante.

“Como ela adivinhou o que eu pensei?!” – Melaine ficou curiosa, mas nem deu tempo de digerir o que acabara de acontecer, e sua mãe, ladeada de um Nicolas sonolento, entrou na sala. Uma senhora idosa, segurando a mão de Raíssa, entrou na sequência. Vestia uma camisola e um penhoar azul; ela sustentava um ar nada severo, bem ao contrário do que Melanie havia imaginado. Óculos de aros grandes, cabelos totalmente brancos. Possuía um andar confiante, apesar da idade avançada.

- Essa é a minha filha Melanie. - frisou Flávia, apontando na direção de Mel, que imediatamente se levantou, esboçando um sorriso endereçado à velha senhora.

- Seja bem-vinda, minha filha. – disse a mulher, num tom cordial.

- A Dona Carmélia é a proprietária daqui já há muitos anos. – completou Flávia – E vai cuidar muito bem da gente.

Sem saber o que dizer, ou não querendo mesmo, a garota concordou com um aceno de cabeça.

- Vocês devem estar muito cansados. Querem ir pro quarto, agora?

- Por favor, Dona Carmélia. – concordou Flávia.

- Por aqui. - a velha senhora apontou o caminho.

“E o restante das nossas coisas no carro?” - pensou Melanie, enquanto seguia a feliz comitiva. “Deixa lá. Acho que nem ladrão existe neste fim de mundo.”

- Você é engraçada! – disse Raíssa, rindo.

Melanie olhou surpresa para a menina um pouco à sua frente. Raíssa estava observando-a, com os luminosos olhos azuis.

- Fim de mundo... – repetiu a pequena.

Melanie nem tentou se aprofundar na tentativa de entender como a garotinha conseguia adivinhar seus pensamentos. Estava muito, mas muito cansada. E o término daquele dia estafante era o que ela mais desejava no momento.

Na manhã seguinte, Flávia havia dormido mais do que o costume. Estava, realmente, cansada. Dirigiu por muitas horas, quase atravessaram o estado. Nicolas também acordou tarde. Como poderia caber tanta sonolência num só corpo? Melanie perguntava-se. Ela, por sua vez, acordara antes de todos e pôs-se, em seguida, a olhar pela janela. As manhãs em lugares assim, tão bucólicos, são lindas! Melanie até estranhou o desejo que sentiu de sair por ali e dar uma volta. A impressão criada do lugarejo, na noite da véspera, poderia se dissipar com a luz do sol. À noite, fica difícil visualizar as belezas que uma cidade tem, por mais minúscula que possa ser. Monte Seco não deveria ser diferente... A garota precisaria, então, tirar a prova naquela manhã.
Antes mesmo de chegar à cozinha, Melanie sentiu o característico e delicioso aroma de café. Parecia que ela estava em uma fazenda. Só faltava ouvir o som de uma vaca, ou o relincho de um cavalo. Ela passou por um longo corredor e olhava as fotos penduradas na parede, imagens antigas. Possivelmente com pessoas da família da proprietária. Parou diante de uma que lhe chamou a atenção; era um grupo pequeno de pessoas enfileiradas e sorrindo. Certamente, todos da mesma família. Passou a imaginar, apontando com o dedo sobre a pessoa, o que cada um poderia representar dentro do círculo familiar. O homem de bigode, que usava chapéu e um terno velho, deveria ser o pai. A mulher de vestido simples era a mãe. O senhor mais velho, com a bengala e suspensórios, era o avô. À frente, duas menininhas muito sorridentes. A mais velha que usava um vestidinho mais claro abraçava a possível irmã mais nova. O seu rosto era um pouco conhecido para Melanie; parecia que já tinha visto a foto dela... A mais nova sorria, mostrando os dentes que faltavam. Ela era bem engraçadinha. Antes de seguir à cozinha, outro detalhe chamou-lhe a atenção. Lá no fundo, outra mulher, mais velha, com a cara fechada, observava a família que estava em primeiro plano. Ela tinha um olhar nada amigável.

“Se queria ser penetra na foto, pelo menos, sorrisse.” - pensou Melanie.

- Bom dia, criança! – cumprimentou Dona Carmélia.

Melanie virou-se e deu de cara com a amistosa senhora no fim do corredor que dava acesso à cozinha.

- Bom dia, senhora! – respondeu, ainda tímida, Melanie.

- Gosta de fotos antigas?

- Mais ou menos. – respondeu, sem graça – São da sua família?

- Digamos que sim. – respondeu a senhora, ajeitando o quadro que parecia estar um pouco torto – Se moraram nesta cidade, mesmo temporariamente, nesta pousada, então são da minha família.

Melanie sorriu por se sentir incluída na família da boa senhora. A mulher retribuiu o sorriso.

- Quer saborear um cafezinho que eu mesma torrei? – perguntou, com certo orgulho, Dona Carmélia.

Melanie respondeu positivamente, com vários balançares de cabeça.

- Eu garanto que você nunca tomou um café tão saboroso.

Dona Carmélia deu meia-volta e entrou na cozinha, seguida por Melanie. A garota experimentou o café, os pães, os bolos, as bolachas caseiras e outros quitutes colocados à sua frente pela sorridente proprietária. Como poderia dizer um “não” àquela senhora? Saiu da cozinha como se tivesse almoçado. Estava indo tomar um ar, quando se deparou com Flávia e Nicolas no corredor.

- Opa! Achamos a desaparecida! – brincou Flávia, olhando para Nicolas.

- Eu estava na cozinha. – respondeu Melanie – Vou dar uma volta por aí. Reconhecimento de território.

- Não vá se perder. – brincou mais uma vez Flávia, seguindo com Nicolas à cozinha.

- Como se isso fosse possível!
Flávia abraçou o filho, e seguiram pelo longo corredor. Melanie estava na porta de entrada quando olhou para trás e viu a mãe parada diante da mesma foto. A garota abriu a porta e saiu. A pequena cidade era ainda menor do que ela imaginara quando a mãe comunicara de sua intrépida decisão. Minúscula, sufocante. Andou algumas quadras, e a cidade terminou. O carro mais novo que viu era o deles; e ele já contava com mais de 10 anos de uso. Mas, ainda sim, tinha os seus atrativos. Poucos, mas tinha. As casas, na maioria muito simples, eram aconchegantes. Ao redor da cidade, podiam se notar vários montes que quase a circulavam, formando uma barreira natural. Um fator preponderante era ter poucas pessoas na rua; bem poucas.
Melanie, depois de andar algumas quadras, já estava voltando pela rua paralela e avistou uma placa com letras escritas à mão; dizia: Mercadinho do João.

“Oh! Criatividade do povo do interior.” – pensou ela, entrando no mercado.

Uma prateleira pregada na parede continha os itens da mais extrema necessidade: arroz, feijão, sal, açúcar, trigo; em geral, só alimento. Também algum material de limpeza e higiene. Uma mesa virou um improvisado balcão e, atrás dele, um homem, possivelmente o “João”, atendia uma garota, que aparentava a mesma idade sua. Melanie aproximou-se e notou que a pequena freguesa olhava-a de canto. Parecia envergonhada. O homem lançou, em sua direção, um olhar seco e balançou a cabeça, como dizendo:

“O que você quer?”

Melanie deu um sorriso amarelo, indicando que ele atendesse a outra garota primeiramente. Ele voltou a atenção aos produtos em cima do balcão e relacionava-os em um caderno.

- Pode levar, menina. – disse ele para a garota à sua frente.

Ela juntou os produtos rapidamente e saiu, quase correndo, sem mesmo olhar para Melanie. O homem fez o mesmo gesto que havia feito anteriormente. O balançar de cabeça indicando: “O que você quer?” Ela concluiu que deveria ser o jeito sutil e amigável que ele costumava atender às pessoas.

- O senhor tem Trident? – perguntou ela, olhando pelo balcão na tentativa de encontrar o que desejava.

- Não. – respondeu, secamente.

“Não?” – pensou Melanie – “Até no Pólo Norte deve ter chicletes!”

- Obrigada, então. – agradeceu Melanie pela simpatia do homem e saiu, desejando-lhe todas as bênçãos do mundo.

Na rua, Mel avistou ao longe a menina seguindo na direção da pousada e apertou o passo, tentando alcançá-la. Quando chegou a alguns metros de distância, ela gritou:

- Hei! Espere.

A menina olhou para trás e começou a andar mais rápido. Melanie diminuiu a passada. “Nossa, será que tenho lepra e não sei?” – pensou desgostosa.

Ela ainda viu a garota arredia entrar na casa ao lado da pousada. “Acabei de sair e já estou aqui de volta.” – concluiu Melanie, ao verificar que estava, novamente, em frente à pousada.

A garota torceu o lábio e procurou um lugar mais tranquilo, como se tudo ali já não fosse calmo, para sentar e dar um tempo antes de entrar. Evitaria um irônico “Já voltou?”, vindo da parte da mãe. Ela olhou mais adiante, seguindo pela rua que dava na autoestrada, um campo aberto, com uma grande árvore solitária no centro. Era um pouco longe; teria que vencer uma subida não muito convidativa, mas, pelo menos indo até a árvore, gastaria mais uma meia hora de tempo ficando por lá, antes de entrar.
Melanie estava debaixo de uma árvore que crescera sozinha, naquele espaçoso terreno. Quem a plantara não imaginou que uma visitante futura pudesse não saber identificar de qual procedência pertencia. Mel representava a garota da cidade grande, perdida e sozinha, que viera parar num lugar tão tedioso. “Não vai fugir de mim, vai?” – gostaria de perguntar para a árvore.
Ela obrigou-se a sentar e a encostar-se no tronco largo da árvore. Poderia ficar ali um bom tempo, ouvindo música, mas acabou esquecendo o Mp4 na pousada. O jeito era ficar olhando para o movimento da estrada que, de vez em quando, recebia um carro, passando em alta velocidade.
O vento soprava os galhos da árvore solitária, e esta parecia dançar, contente, pela presença incomum de uma pessoa usufruindo de sua sombra. Melanie olhava para a pousada e pensava por quanto tempo teria de permanecer ali, naquela cidade. Suas amigas deveriam estar cheias de planos. Ela, por enquanto, não fazia parte deles. Pensou em levantar e voltar ao quarto, para ficar ainda mais aborrecida, mas algo mudou sua intenção. Passando a uns 100 metros à sua frente, estava o maior homem que ela já tinha visto. Um poste ambulante, que devia ter bem mais que dois metros. Ele até caminhava com dificuldade. Melanie ficou de boca aberta vendo aquele homenzarrão passar ao longe.

- Wladmir! Espere!

Mel percebeu que alguém chamava o grandalhão. Ele parou e, muito lentamente, foi virando-se. Parecia que tinha uma grande dificuldade em se equilibrar. A garota viu quem o havia chamado. Era um sorridente rapaz. Moreno, de cabelos castanho-escuros, quase na altura do ombro. Era bonito. Estava sem camisa e vestia uma calça cáqui. Ele parou ao lado do imenso homem e parecia um anão. Melanie riu. O garoto mal alcançava a cintura do outro!

- Não fica chateado, não, Gigante. – Melanie ouviu o rapaz falar – Mas é que não precisa você ficar atrás de mim toda a hora.

“Hum. Devem ser de circo; sei lá.” – pensou Melanie.

O rapaz devia ser algum artista que o grandalhão precisava proteger, ou coisa assim. Tem muita situação estranha neste mundo... Nesse caso, Melanie olhou bem para o homem para tirar a prova de que ele não estaria usando uma perna de pau. Quem sabe? Não dava indícios disso. Sua excessiva altura pertencia a ele mesmo. Um carro surgiu na estrada, e o motorista, quando avistou o grandalhão, foi diminuindo a velocidade e passou ao lado dos dois com a nítida expressão de espanto.

- Vamos embora, Gigante. – disse o rapaz, olhando o carro seguir e retomar sua velocidade normal – Já está chamando a atenção de novo.

O homem grande concordou com um aceno de cabeça. O rapaz sorriu e pulou em suas costas. Foi uma cena engraçada, e Melanie não aguentou; mesmo sem querer, riu alto. Os dois olharam para a garota, que até então não tinham notado debaixo da árvore. Ela corou e baixou os olhos. O rapaz desceu das costas do grandalhão. Ficou parado por alguns segundos, olhando para Melanie, que espiava discretamente e estava ficando angustiada pelo olhar insistente do rapaz. Ele não se moveu até fazer um gesto esquisito, sorveu o vento que seguia na sua direção e que passava por Melanie, balançando as folhas da árvore.

“Que cara estranho.” – pensou ela.

- Temos que ir. – disse o grandalhão, e Melanie identificou seu sotaque; era russo.

- Já vamos, Gigante. – disse o rapaz, ainda olhando para Melanie.

- Ir agora! – frisou o russo.

O rapaz olhou para o homem e, em seguida, desviou seu olhar para Melanie. Parecia que tinha a intenção de falar alguma palavra, mas se arrependeu. Lentamente seguiu até onde estava o grande homem que, equilibrando-se em suas enormes pernas, andava pela estrada em direção à cidade. Melanie notou que o rapaz, a cada dois ou três passos, olhava para trás, até entrarem em definitivo em Monte Seco.

“Cada maluco!” – pensou, aliviada.

A garota esperou uns dez minutos, mais ou menos, e levantou-se. Nem sinal da dupla de esquisitos. Já estava mais do que na hora de retornar à pousada.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Capítulo Um – Conto de farsas.

Capítulo Um – Conto de Farsas

Bom e ruim. O último dia de aula é sempre assim, dúbio. Bom, porque Melanie poderia, enfim, dar um tempo em matemática, física e gramática. Não necessariamente nas matérias, mas em Nair, Cida e Vitório, os professores que as lecionavam e que, hora sim, hora não, achavam pequenos motivos para perseguirem-na. Ruim, porque iria ficar longe da escola, da biblioteca e dos amigos. Claro, não precisaria sentir saudades das amigas mais próximas, porque essas ainda estariam presentes, certamente, em quase todos os dias das férias. Ainda teriam as tardes no shopping, os fins de semana na praia, os shows e as festinhas de aniversário. Mas sentiria falta, sim, da sala de aula em geral. Das brigas por maquiagem ou qualquer outra razão ainda mais banal, das disputas pelos melhores lugares nos jogos e apresentações da equipe de natação, das brincadeiras que só ela e as amigas conseguiam entender. Daquela menina doida, Renatinha, que não tirava o mesmo moletom com capuz. Do menino que, toda semana, recebia um novo apelido e que só sabia dormir na carteira. Da outra menina, Mayah, que só sabia falar da mesma bandinha de rock. Afinal, eles todos também eram para Melanie como uma banda; não poderia faltar um que a música desafinava.

- Mel, já deu minha hora. – disse Carol, oferecendo o rosto para o beijinho de saída – Não esquece; depois das sete, no Messenger, hein?

- Combinado. - respondeu Melanie, enquanto retribuía o beijo.

- Olha lá. Todo mundo vai entrar na mesma hora.

- Ok! Pode deixar.

Carol saiu distribuindo beijos e sorrisos. Alegre e comunicativa, a amiga de Melanie era sempre o centro das atenções. Nascera para ser miss popular. Já Melanie, sabia que jamais poderia ocupar esse posto; era mais introspectiva, mais na dela. “Amigas por acidente”, era como considerava essa relação. Até estranhou ter feito amizade justamente com a mais popular de todas as meninas. Quando chegou ao colégio, Melanie ainda usava a cor roxa no cabelo. Na verdade, a maioria de suas roupas contém, mesmo que em pequeno detalhe, a sua cor predileta. Mas, por essa época, seus cabelos tinham voltado ao castanho-escuro, embora o roxo ainda não houvesse saído da sua vida. Sempre está lá, ou na estampa da camiseta, ou no inseparável All Star.
Melanie sentiu que estava na sua hora; deu uma olhada geral na galera, sugeriu um tchau meio sem graça e saiu. A garota sentia o coração pesado ao atravessar, pela última vez naquele ano, o portão da escola. Olhou com candura os desenhos, pintados pelos próprios alunos, no muro do colégio. Ela não havia participado da criação do desenho que fora feito no início do ano, nas aulas de arte, mas simpatizava com ele. O tema escolhido fora preconceito, e ela sabia muito bem como as pessoas poderiam ser rudes, quando ainda não a conheciam. Melanie tinha consciência de que mais difícil do que fazer as novas amizades era ter que as abandonar pelos próximos meses. A garota entrara no meio do ano, quando todos estavam bem entrosados, e ela, outra vez, sentia-se uma intrusa na colmeia. A mãe, Flávia, tinha o péssimo hábito de mudar de emprego e, consequentemente, de cidade. Isso dificultava para Melanie, que sempre precisava iniciar novas amizades. Era um processo cansativo; afinal, existem pessoas de todo o jeito. Algumas favorecem a aproximação, já outras parecem ter algum tipo de repelente natural sobre a pele. Namorado, então, nem pensar! Se quisesse manter um namoro mais duradouro, teria que ser com algum dos garotos das séries de TV.
Melanie cruzou a rua e logo avistou o carro da mãe: um Fiesta quatro portas, prata, já há quase cinco anos na família, com um saliente amassado do lado direito perto da porta. Flávia disse que um descuidado qualquer batera no carro e fugiu. Mas Melanie sabia que a história podia ser outra, já que conhecia muito bem a condição de barbeira da mãe.

- Quero que a garotinha fique sabendo que faz 20 minutos que estou a esperando.. – disse Flávia, querendo parecer irritada; Melanie sabia que não devia fazer nem cinco.

- Último dia, mãe. Esqueceu? – respondeu ela, ainda parada do lado de fora.

- Quer um convite impresso para entrar?

- Não. Só estou dando uma última olhadinha. Quem me garante que será neste colégio que irei estudar no ano que vem?

- O futuro a Deus pertence minha filha. Agora rapa pra dentro, que a mim só pertence o direito de chegar na hora.

A tal “olhadinha” a que Melanie referia-se tinha nome: Bruno. Típico garoto-ímã, aquele que atrai todas as atenções para si. Durante esses meses, ele fora seu sonho de consumo da vez. Bonito, de sorriso conquistador e popular. Além de Melanie e de suas amigas, 99 % das mulheres do colégio se interessavam por ele. No restante, podia-se colocar a diretora, as professoras, as atendentes e as faxineiras. Se bem que aquela estagiária demonstrava ter uma queda bem acintosa para o lado do bonitão... Melanie, antes de sair, vira que Bruno ainda estava no pátio, perto da cantina, na já tradicional rodinha de amigos. Ela desejava, naquele instante, antes de entrar no Fiesta, poder vê-lo só mais uma vez! Poderia manter a imagem final guardada na memória, durante os próximos meses.

- Meu Deus, Mel! Tenho hora! – alertou Flávia, agora irritada de verdade – E ainda tenho que passar na escola do Nicolas.

- Ok! Calma, que já estou indo.

Melanie deu a volta no carro, mas sem perder a atenção no portão de saída. Foi o mais devagar possível; mas era um Fiesta, um carro pequeno, não um Hammer. Nem sinal de Bruno. Teria que entrar de qualquer jeito.

“Ah! Que bobagem! Ficar esperando um cara que não me deu moral nenhuma nesses cinco meses.” – pensou Melanie enquanto entrava no carro.

- Até que enfim! - disse Flávia, ligando a chave e a seta para saída – Pensei que queria criar raízes aí fora.

- Já disse; só estava me despedindo. – respondeu ela, um pouco chateada – Agora, então, já pode ir, Schumacher.
Flávia balançou a cabeça sorrindo.

Instantes depois, estavam as duas seguindo pelas avenidas de Curitiba. O colégio de Melanie dava uns 20 minutos, mais ou menos, da escola na qual Nicolas, seu irmão, estudava. Que, por sua vez, dava 20 minutos da casa em que moravam. A escola do garoto ficava entre os dois pontos. Nicolas, na verdade, era meio-irmão de Melanie, filho de Edgar, ex de Flávia que a abandonou uns dois anos atrás, para voltar com a ex-mulher que já o tinha abandonado para ficar com outra mulher, antes de conhecer Flávia. Parece doideira, confuso; mas é a vida. O garoto estava do mesmo jeito, parado, sozinho, encostado ao muro, esperando. Ele viu o carro e correu para encontrá-las. Flávia nem havia estacionado direito, e Nicolas já estava a postos para entrar.

- Viu? Isso é ser eficiente. – disse Flávia, com orgulho contido.

- Não, mãe. Isso é ser antissocial. – refutou Melanie, enfatizando a conduta do irmão, já que, toda vez, ele estava no mesmo lugar, sozinho, esperando as duas; enquanto os seus colegas permaneciam sempre em grupos esperando os pais.

- Nossa, menina! Morderam você na escola hoje?

- Difícil, mãe. Para morder tem que se arriscar a chegar perto.

- E pensar que você está estudando para, um dia, quem sabe, virar chefe! – disse Flávia, já olhando pelo retrovisor se o filho havia colocado o cinto – Ai daquele que for seu subalterno!

“Bem que poderia ser aquele garoto metidinho da escola...” – pensou Melanie, considerando ser uma boa alternativa para se vingar de Bruno.

- Como foi na escola hoje, filho? – perguntou Flávia, mais uma vez olhando para o filho pelo retrovisor.

- Até que foi bom. – respondeu Nicolas – Me acertaram uma pedrada na cabeça.

Flávia olhou rapidamente para trás, quase se desconcentrando do trânsito. Ela tentava visualizar algum ferimento. Melanie olhou para o irmão pensando: “Se esse foi um dia bom, dia ruim é só se cair um satélite da Nasa na cabeça dele.”

- Machucou você, meu filho? – perguntou a mãe, preocupada; agora olhando a cada instante pelo espelho.

- Não, mãe. Eu estou legal. – disse ele, despreocupado.

- Por que fizeram isso? – perguntou Melanie.

- Eu bati em um menino.

Melanie riu e recebeu um olhar de reprimenda da mãe.

- Por que você fez isso, garoto? – perguntou Flávia, não escondendo a irritação.
- Ele falou que você e meu pai não moram juntos por culpa minha.

Flávia mordeu os lábios. Melanie percebeu que a situação mexia com o ânimo da mãe. Nunca foi uma situação fácil, nem para ela, nem para Nicolas. Apostara num relacionamento que só lhe trouxe complicações. Mas o que mais o fedelho poderia querer? Ele sempre podia ver o pai quando quisesse; era só ligar. Edgar morava em outra cidade, mas ainda assim era perto. Agora, ela não tinha a mesma sorte. Nem mesmo a voz do pai por telefone poderia ter. Nem uma foto sequer para olhar. Assim mesmo, de vez em quando, sentia falta do homem que nunca conhecera.
A casa em que moravam, nessa época, era um pouco menor. Melanie, mesmo assim, apreciava-a mais do que a anterior. Na entrada da cidade, de quem vem de Campo Largo, pouco depois do Parque Barigui. A cor bege-claro da casa contribuía com a preferência da garota. Tinha apenas dois quartos e o básico; sala, cozinha, banheiro, mas já era suficiente para Melanie sentir-se bem. Não tinha boas lembranças da última casa em que vivera, na última cidade de onde vieram: Londrina. Sofreram uma invasão que traumatizou a todos. Um marginal entrou na casa, mesmo eles estando dentro, dormindo. O bandido não roubou nada; nem mesmo a polícia soube explicar como ele entrara, já que nada foi arrombado. Mas Melanie ainda se lembrava da real presença de uma pessoa, dentro do seu quarto, observando-a ao dormir. A garota acordou por dois motivos: era uma noite quente de verão, e ela sentiu o corpo todo gelar de repente. E, também, por ter o sono leve, pôde sentir uma respiração descompassada e ofegante próxima a ela. Estava escuro. Não conseguiu visualizar o rosto daquele que estava oculto pelas sombras. O pequeno facho de luz que entrava pela janela apenas revelava sua postura. Com um terno, parecendo requintado, ele estava sentado ao lado do armário, com as pernas elegantemente cruzadas. Melanie teve o ímpeto de clamar por socorro. O invasor pareceu perceber e levantou-se. Ela fechou os olhos e gritou. Quando novamente abriu-os, o invasor não estava mais lá. Flávia acordou e correu em desespero para o quarto da filha; chamou a polícia e, tempo depois, os policiais vieram, remexeram tudo e nada encontraram. Chegaram a sugerir que fora apenas um sonho, um pesadelo. Mas Flávia tinha o discernimento de saber quando a filha não falava a verdade. O que, certamente, não era o caso.
Melanie não se contentou somente com o crédito recebido da mãe. Utilizando seu instinto, adquirido por algumas horas assistindo CSI, encontrou algo que os policiais não perceberam. Debaixo da cadeira, bem escondidas no assoalho, algumas gotas de um líquido que lembrava sangue. Melanie sabia que, até antes de se deitar, não havia ali gota de coisa alguma. Talvez o tal invasor estivesse ferido. Ou, pior, ferira alguém. Dias depois, ela sentiu falta de um objeto: uma caixinha de música que mantinha guardada. Era de sua mãe, que passou para ela quando nasceu. Estava guardada porque tinha quebrado, e a sua melodia, tão familiar à Melanie, não podia mais se ouvir.
Como de costume, a chave da porta sempre emperrava. Flávia girava com cuidado, com medo de quebrá-la. Depois, daria um trabalhão ter que trocar a fechadura, por causa do pedaço da chave que ficaria emperrado. Era serviço para homem, e o único da casa mal sabia consertar os Transformers que possuía. Melanie já entrou abandonando a mochila no sofá enquanto procurava o controle remoto da TV. Nicolas correu para o banheiro.

- Hei, mocinha! – disse Flávia, apertando o botão da secretária eletrônica – Não sabe onde guarda isso, não?

- Claro que sei, mãe. – respondeu ela, pegando de novo a mochila – E “isso” é uma mochila.

Flávia apenas fez mais um gesto apontando a porta do quarto. Melanie seguiu arrastando a mochila, enquanto ouvia a voz mecânica da secretária avisando que tinham duas mensagens. Curiosa, como sempre, ela parou no corredor para ouvir.

“Oi, Flávia... É a Leonora...” - Leonora era colega de trabalho de Flávia. “Seguinte, uma e meia tem reunião aqui na imobiliária.”

Flávia já trabalhara em muitos ramos de atividade. Inclusive já fora revendedora de cosméticos e até trabalhou com massoterapia. Agora, era corretora de imóveis. Uma de suas tantas habilidades adquiridas forçosamente.

“E já vou adiantando...” - a mulher diminuiu o tom da voz como se cochichasse - “O Seu Mathias está fulo da vida com você. Acho que você já deve saber o que irritou tanto o homem, não é?”

Flávia até gostaria de não saber. Mas o seu fraco desempenho, depois de tantas promessas de ótimos negócios, alardeado por ela no início da contratação, seria a razão do mau humor do chefe.

“Beijão, querida, que já estou indo almoçar. Até depois.”

Melanie pensou, depois do click final da mensagem, que seria bom que o almoço daquele dia fosse com talheres de plástico. Imaginando já, antecipadamente, que o mau humor de Flávia eclodiria por qualquer detalhe. Talvez a segunda mensagem pudesse amenizar a situação. Poderia ser uma boa notícia. Melanie lembrou que sua mãe tinha um tique nervoso, principalmente quando era por motivo de raiva. Flávia piscava, sem parar. A garota reparou que a mãe já parecia o cursor do Word, quando apertou o botão para ouvir a segunda mensagem. O que vinha do telefone assemelhava-se a uma respiração, quase inaudível, somado ao barulho de quando alguém passa o aparelho de uma orelha para outra. Mais nada. Por alguns longos segundos, o mesmo som.

- Tem gente que não tem o que fazer. – disse Flávia, considerando ser um trote, ou algo assim.

Ela apontou o dedo indicador no botão de apagar.

“Olá...” Uma voz fraca. Grave, daquelas que se demora um pouco a identificar se é de homem ou mulher, fez-se ouvir. “Sou eu...”

Era uma mulher, aparentando idade avançada. Ela não mencionou o nome, mas Melanie percebeu que Flávia já a havia identificado, pois foi se soltando levemente no sofá, como se estivesse com medo de cair.

“Sei que não deveria ligar... Mas não sei o que fazer...”

Flávia levou a mão à boca. Sua mão tremia. Nicolas saiu cantarolando do banheiro e seguia para sala. Melanie segurou-o pelo braço, quando passava por ela, e tapou-lhe a boca.

- O que foi? – disse Nicolas.

Melanie apontou para a mãe e fez sinal para que o garoto permanecesse em silêncio.

“Tudo está mudando por aqui... Não tenho mais condições de passar por tudo aquilo de novo...” A mulher pronunciava com dificuldade as palavras entre tosses fortíssimas. “Preciso que você me ajude agora... Por favor... Assim como eu lhe ajudei um dia...” A mulher foi tomada de uma tosse ininterrupta que a dificultava de pronunciar qualquer palavra. A única frase que se pôde ouvir antes de o telefone desligar foi um “Venha, Flávia! Depressa!”

Flávia desligou, empurrando a secretária eletrônica, com repulsa. Parecia que tinha criado nojo dela. Afundou as mãos nos cabelos e permaneceu imóvel. Para Melanie, já era mais do que suficiente perceber o estado que a mãe ficara depois de ouvir a mensagem, mas a mulher idosa sabia para quem tinha ligado. Ela disse um nome no fim da gravação. Disse o nome de Flávia. Com certeza, não era um trote.

Durante seus 16, quase 17 anos, de vida, Melanie já estava mais do que habituada ao jeito da mãe. Sabia o que a deixava feliz, triste, magoada e com medo. Definitivamente, o medo a estava dominando. Ficou sentada lá no sofá por um bom tempo, quase na mesma posição. Melanie improvisou o almoço, um macarrão básico e uma salada rápida, já que isso era sempre a mãe que providenciava. Flávia não almoçou, nem veio à mesa. Melanie serviu Nicolas e até colocou comida em um prato para si mesma, mas já sabendo que seria perda de tempo. Não tinha fome também. Melanie ficou pensando em quem seria aquela mulher... E por que apenas de ouvir sua voz, em menos de um minuto de gravação, Flávia ficara transtornada daquele jeito. A garota não sabia nem por onde começar a encontrar respostas, além das que poderiam ser dadas pela própria mãe. Mas ela não teria coragem de perguntar nada.
Então, a garota esperou Nicolas terminar. Durante esse período, ficou ali, sentada, separando com o garfo a comida no prato. Detestou o clima pesado que se instaurou na casa àquela hora. Estava absorta em seus pensamentos quando Flávia entrou na cozinha, com uma expressão nada amistosa.

- Vou sair. Preciso resolver algumas coisas. – disse ela, arrumando o interior da bolsa como que procurando algo – Cadê minhas chaves?

- Está na sua mão, mãe. – respondeu Melanie, notando que Flávia estava ainda bastante nervosa - Tudo bem com você? – arriscou perguntar a menina.

- Está sim. – respondeu ela, esforçando-se para soar verdadeira – Fique tranquila. Só cuide bem do seu irmão.

- Isso eu faço sempre. – completou Melanie, percebendo tardiamente que não era uma boa hora para instigar a mãe.

Flávia deu um beijo em Nicolas que estava fazendo um desenho sobre a mesa e, na sequência, ficou de frente à Melanie; abraçou-a apertado. A garota ficou com os braços esticados, imóveis, envolvidos pelos da mãe. Ela estranhou essa repentina manifestação de afeto. Flávia olhou-a nos olhos e saiu. Melanie considerou que aquele, realmente, não estava sendo um dia normal.
Tinha passado mais de meia hora, quando Melanie lembrou-se do combinado com a galera da escola de estarem todos no mesmo horário no Messenger. Mas não tinha mais importância. Ela agora se preocupava com a demora da mãe, que já deveria estar em casa há uma hora. Sentou-se na frente de casa, na elevação da mureta, segurando o celular na esperança de receber uma chamada, já que o telefone da mãe só caía na caixa-postal. Algum imprevisto acontecera... Flávia nunca se atrasava. Melanie deixou Nicolas vendo TV. Ele ficava entretido por horas, assistindo ao Discovery Kids. O seu desejo era ver logo o carro prateado dobrar a esquina. Era horário de verão, e a cor avermelhada do horizonte estava se dissipando, dando lugar a um céu negro, cravejado de brilhantes. Alguns minutos se passaram, e a garota levantou-se. Sentiu-se um pouco tonta. Aquela sensação de ficar vendo pequenas luzes depois que se levanta subitamente se apossou dela. Labirintite, coisa assim. Um barulho estranho chamou sua atenção. Pareciam duas espadas trocando golpes.

“Ah, esse peste! Tá assistindo filme violento de novo.” – pensou, seguindo para dentro de casa. “Depois sai batendo nos colegas de escola e não sabe por que.”

Entrou na sala, e o som cessou. Nicolas estava deitado no sofá vendo os desenhos. Ele nem tinha se mexido! Não poderia mudar rapidamente de canal, mesmo porque o controle da TV estava longe. Era estranho, mas Melanie deu de ombros e saiu novamente.

A rua da casa onde moravam era bem tranquila. Arborizada. Inclusive, tinha uma grande árvore bem na frente do muro, quase de frente ao portão. Isso dificultava para quem estava fora olhar quem a parte de dentro, e o mesmo acontecia ao inverso. Por isso, ela estava do lado de fora do muro, na calçada. Quanto antes visse a mãe chegando, acabaria logo sua angústia.
Passou mais uma hora, e já roía as unhas sem parar. Entrou novamente, e Nicolas dormia, mesmo com o som alto da TV. Saiu outra vez. Melanie estava muito nervosa e ficava ainda mais a cada tentativa em vão para o celular da mãe. O único movimento de carros e de pedestres era a alguns quarteirões adiante, numa rua transversal. Uma avenida. Na frente da casa, a única agitação além do da garota era dos pequenos besouros batendo, insistentemente, contra as lâmpadas dos postes. De repente, ela ouviu um ruído, como som de passos. Olhou para a direção de onde o som partira e viu um sujeito parado na esquina. Ele parou de perfil, em cima do meio-fio, igual quando alguém espera para um carro passar, mas não havia carro algum vindo por aquela rua. Colocou as mãos nos bolsos. Estava bem vestido: jeans preto, camisa branca e usava sapatos caros. Tinha cabelos castanhos. Quase loiros. Desgrenhados, mas na moda. Bonito. Charmoso. Até demais. Tanto que Melanie não conseguiu tirar os olhos dele.

“Nossa! O que o irmão mais novo do Brad Pitt está fazendo aqui?” – pensou Melanie.

Ele riu. Baixou a cabeça levemente e olhou-a por baixo.

“Credo! Será que eu falei alto demais?” – pensou de novo.

Ele continuou olhando. Ela, evidentemente, só o observava com o canto dos olhos. O homem tinha um sorriso enigmático. Uma mistura de cinismo e pureza. Satisfação e desejo. Era mais do que um garoto-ímã. Era irresistível.

Ele tirou algo do bolso; parecia um chaveiro de carro. Apertou o botão, e o alarme de um veículo estacionado um pouco mais longe desligou. Nervosa pela demora da mãe, Melanie nem havia notado o carro importado estacionado. Um Lamborghini Gallardo, vermelho. Imponente. Daqueles que é difícil ver por aí. A garota olhou na direção do belo estranho. Ele permanecia olhando.

“O que ele está pensando? Por que não para de olhar pra mim?” – pensou a garota. Logo ela, uma garota simples. Sentada sozinha em frente a sua casa. De cabelo preso e cara lavada. De calção jeans, camiseta básica e chinelo. Chinelo? Ela sentia-se uma piada!

Melanie estava a ponto de entrar. Ela queria ficar ali, observando e sendo observada por aquele estranho, mas sentia vergonha de si mesma. Ficou pensando por que as pessoas ficam tão desleixadas quando estão em casa. Nunca se imagina que situação como essas irão acontecer? De repente, o Fiesta prata quatro portas convergiu para o lado da casa. Era Flávia. “Graças a Deus!” – agradeceu Melanie.

Aliviada, ela olhou na direção da esquina, e o belo estranho não estava mais lá. A garota percebeu o farol do Gallardo ligar. Flávia estacionou bem em frente a sua casa. Melanie levantou, pois o Fiesta ficara bem na sua frente. O carro importado estava vindo. Ele, o estranho, passou com o vidro do carona abaixado e olhando para Melanie. Lançou sobre ela mais uma vez seu sorriso enigmático. Depois, seguiu pela direção contrária de onde Flávia tinha vindo. A mãe, desconfiada, desceu do carro e percebeu a direção que os olhos da filha endereçavam.

- O que é isso, Mel? – disse ela, batendo a porta.

- Isso o que, mãe?

- Quem era esse aí? – perguntou Flávia, desconfiada.

- Como eu vou saber?! Devia estar só passando pela rua. – respondeu, desconversando.

Flávia fez um sinal para que Melanie olhasse para o seu carro. A garota, então, deu-se conta de que tinha uma pessoa dentro: Leonora. Melanie bloqueava a saída da amiga de trabalho de Flávia. A filha até tinha estranhado a mãe não ter pedido para que ela abrisse o portão para guardar o carro. Melanie retirou-se da frente da porta, e Leonora saiu. Era bem baixinha e magra. Estava usando um tailleur marrom, com uma saia evasé e um coque no cabelo. Parecia que tinha tomado banho de perfume.

- Oi, Leonora. – Melanie cumprimentou a mulher chamando pelo nome; ela havia dito que detestava quando a chamavam de “Dona” ou “Senhora”.

- Oi, lindinha. – respondeu Leonora tão efusiva que Melanie pensou que a mulher apertaria as suas bochechas.

- A Leonora está aqui, porque veio me dar uma ajudinha. – disse Flávia.

A moça sorriu tanto que a garota pôde ver o amálgama dos seus dentes do fundo.

- Vamos entrar, então. – sugeriu Flávia.

A amiga do trabalho entrou primeiramente; ela passou por Melanie que quase tonteou ao sentir o forte perfume entrar em suas narinas. Flávia entrou atrás e olhou para filha com uma careta, seguido de um sinal abanando o nariz. A garota imaginou o que a mãe devia ter sofrido dentro do carro. Melanie estava prestes a entrar quando olhou na direção de onde o belo estranho estivera parado. Algo no chão lhe chamou a atenção. Ela olhou para a porta de entrada da casa. Leonora e a mãe já tinham sumido.

“Vou ver o que é.” – pensou ela, já mudando o primeiro passo na direção da esquina.

Quando chegou perto, abaixou-se e pegou um objeto. Era uma rosa. Uma linda rosa vermelha. Melanie cheirou-a. A sua fragrância era marcante. Seria possível que havia se misturado com o cheiro do belo estranho? Ao menos, tinha cheiro de mistério. Ela entrou escondendo a rosa. Conhecendo bem a mãe, sabia que seria submetida a um batalhão de perguntas. Flávia estava junto ao sofá, custando a acordar Nicolas. Leonora pôs-se sentada no estofado menor, olhando um álbum de fotos.

- Faz tempo que ele dormiu aqui? – perguntou Flávia, lançando aquele olhar do tipo “Não lhe pedi pra cuidar dele?”

- Acho que sim. – respondeu Melanie, ainda com as mãos atrás das costas – Eu estava lá fora esperando você dar um sinal de vida.

Nicolas acordou ainda muito sonolento. Flávia considerou por bem não discutir com a filha. Afinal, tinha uma pessoa praticamente estranha dentro de casa. Era também por uma falha muito pequena para se iniciar uma discussão, uma vez que as duas tinham conhecimento de que Nicolas vivia se jogando nos cantos para dormir. E, mais ainda, que Melanie tinha razão. Ela, Flávia, sumira e não dera satisfação alguma a respeito, até aquele momento.

- Então, senta aí que precisamos conversar. – disse Flávia, sem escolher as palavras.

“Ah! Não.” – pensou, imediatamente, Melanie, já ciente do que essas palavras queriam dizer. Já as tinha ouvido diversas vezes.

- Não! Vou ficar de pé. – respondeu ela, já prevendo a própria reação – Pode falar.

- Trouxe a Leonora aqui, – Flávia continuou – porque vamos precisar ficar longe uns dias, e ela vai cuidar da nossa casa.

A mulher parou de ver as fotos e ficou olhando para Melanie; parecia querer ouvir palavras de agradecimento por seu gesto.

- O quê?! – perguntou a garota num tom mais alto, levando as mãos para frente, esquecendo que segurava a rosa – Longe uns dias?! Como assim?!

Leonora levantou e veio em sua direção. Ela envolveu a rosa com as minúsculas mãos.

- Nossa! Que linda! – disse a mulher, cheirando-a.

Melanie ficou atenta, preocupada que a tocasse com mais força e a despedaçasse. Leonora olhou-a, sorrindo, e voltou a sentar. Melanie imaginava se a atitude da mulher era a de alguém que nunca recebera uma rosa sequer em toda a vida...

- Aconteceu uma coisa, e preciso que vocês me acompanhem. – continuou Flávia, olhando para rosa.

- Mas para onde a gente vai? – perguntou Melanie, colocando as mãos para trás novamente.

- Quando a gente chegar lá, você verá, Julieta. – respondeu a mãe, com a cara torta.

“Só que a Julieta, pelo menos, sabia o nome do Romeu.” – pensou a garota.

- Bom... Sendo por alguns dias. Beleza.

- Só por uns dias, sim. Eu já conversei com a Leonora e expliquei tudo para ela como funciona aqui. Ela vai dar comida para os peixinhos do Nic. Vou deixar dinheiro para as contas que forem vencer... Essas coisas.

Leonora gesticulou com a cabeça, demonstrando que tinha tudo anotado.

- Se tiver uma recomendação, pode dizer. – falou a prestativa moça.

Melanie olhou-a com um olhar grato. Afinal, ela cuidaria de seus pertences. Com certeza, essa viagem repentina era algo relacionado ao trabalho da mãe. Ela prometera mundos e fundos para o tal Seu Mathias. Agora, estava mais do que na hora de cumprir. Claro que, obviamente, se estivessem de volta o quanto antes.

Mesmo acordando mais tarde do que nos outros dias, Melanie sentia-se um trapo. Obrigou-se a dormir tarde, já que a amiga da mãe, Leonora, foi embora depois da meia- noite. Ficaram ela e Flávia jogando conversa fora e tomando vinho. Era um vinho que Flávia guardava já desde os tempos de Edgar. Depois de uma garrafa inteira, o volume das conversas e risadas alterou-se, ficando cada vez mais alto. Nicolas, para variar, dormia até com uma britadeira funcionando a mil ao do lado da cama. Melanie já não tinha essa sorte. Mesmo que seu quarto fosse blindado, ela não conseguiria dormir com tanto barulho. A risada de Leonora era estridente. E, quando ela começou a falar as primeiras bobagens, de caráter mais adulto, Flávia sugeriu que precisava dormir. Chamaram um táxi, e a desmedida e feliz Leonora foi para casa cantarolando.

O momento do café-da-manhã não era o que Melanie tinha planejado durante toda a semana. Imaginou, no seu primeiro momento de férias, que iria acordar feliz, pronta para um dia cheio de atividades com as amigas. Mas não sem antes, de manhã ainda, dar uma passadinha na biblioteca municipal, para garantir uns dois bons romances. Depois, compraria mais outros dois em uma livraria. Afinal, o dinheiro que ela ganhava da mãe, para cuidar da casa e do irmão enquanto Flávia trabalhava, possibilitava-a gastar um pouquinho com suas maiores paixões. Dependendo do livro, ela lia em três ou quatro dias. Mas levava muito mais tempo para se livrar da sensação, boa ou ruim, que ele trazia-lhe. Adorava se fazer passar pelas heroínas daquelas histórias... Mesmo das mais tristes.
Tombou seu corpo na cadeira e ficou olhando para a xícara à sua frente. Melanie desejava ter, naquele momento, o poder da telecinesia. Colocaria, assim, seus olhos sobre a garrafa térmica, e ela seria aberta, seguindo já quase deitada até a sua xícara; iria enchê-la de café. Nicolas tomava o café como todos os dias, fazendo os mesmos barulhos irritantes. Flávia estava de pé, parada, com uma xícara na mão, olhando pela janela. Ela nem notou a filha chegar. Estava entretida com seus pensamentos.

- A mamãe falou que nós vamos viajar. – disse Nicolas.

“Grande coisa.” – pensou Melanie, respondendo-o com uma careta.

A mãe virou-se, enfim, percebendo sua presença.

- Dormiu bem? – perguntou Flávia, tomando, em seguida, um gole do café; pela cara que fez, o café já devia estar frio há muito tempo.

- Dormi. – respondeu Melanie, não querendo importunar a mãe com seus problemas.

- Ainda tenho umas coisinhas para resolver. Depois a gente pega a estrada.

- Posso saber do que se trata?

Ela permaneceu pensativa. Parecia que ainda não tinha uma resposta.

- São coisas... – ela pensou mais um pouco – ...do meu trabalho.

- E por que a gente precisa ir também?

- Porque são meus filhos. Vou ficar uns dias fora e quero vocês debaixo da minha visão.

- Eu quero ir junto. - disse Nicolas.

“Puxa-saco!” - pensou Melanie, enquanto observava a mãe passando a mão pelos cabelos arrepiados do irmão.

- Preferiria ficar aqui. – disse Melanie, mesmo ciente de que não haveria outra solução para ela - A sua amiga não vai cuidar da casa? Então, cuida de mim também.

- De jeito nenhum. – Flávia respondeu já dando indícios de que o mau humor da manhã a tinha alcançado bem naquela hora – Vocês dois vão comigo. A Leonora só vem dar uma passadinha aqui, dia sim, dia não.

Melanie considerou melhor não prosseguir com a discussão. Ela sabia que iria perder. O argumento da mãe era sempre o mais eficiente: o tom de voz mais alto.

Flávia, antes de sair pela manhã, avisou os filhos de que, dependendo das circunstâncias, não viria para o almoço. De fato, ela não veio. Já tinha passado das duas da tarde, e Melanie estava completamente aborrecida, em frente à TV, passando um a um dos canais. Nada lhe prendia a atenção. Até que surgiu na sua mente a imagem do estranho da véspera, à noite. Possivelmente, fora a primeira e única vez que o veria. Foi até o seu quarto. Colocou uma calça jeans. Depois procurou uma blusinha de que gostasse. Jogou longe o chinelo e colocou um tênis. Parou diante do espelho. Soltou os longos cabelos castanho-escuros e ajeitou com cuidado os fios. Pegou seu estojo de maquiagem e fez uma produçãozinha básica. Estava pronta para sair. Passou pelo pequeno corredor em direção à sala; notou que Nicolas jogava no computador. Esse era mais um dos seus hábitos saudáveis.

- Já volto. – avisou para as paredes, já que Nicolas nem se mexeu, além de apertar os botões do teclado, enquanto mordia a língua com o canto da boca.

O movimento durante o dia era mais vigoroso. Carros e pessoas passavam mais constantemente. Durante quase meia hora em que ficou ali, Melanie não viu nem sinal do carro vermelho ou do seu dono. Sentiu-se uma idiota, ali fora, esperando um homem passar. Um cara que nem mesmo conhecia. Entrou chateada.
“Vou para outro mundo mais feliz.” – pensou ela, já seguindo para sua coleção de livros, desejando tomar o lugar de uma das suas fiéis companheiras em seus mundos perfeitos. Não deu tempo nem de pegar o primeiro livro, e o telefone tocou.

“Minha mãe”. – pensou.

Nicolas estava concentrado demais na disputa do jogo, já que ele era sempre o primeiro a sair correndo e atender. Melanie foi até o aparelho e atendeu.

- Alô! - do outro lado da linha, o silêncio - Alô! – repetiu.

Nenhum sinal.

- Ok! Vou desligar.

Melanie utilizava sempre a mesma tática; falava que iria desligar e continuava ouvindo. Numa dessas, a pessoa manifestava-se. Ninguém respondeu. Só tinha uma alternativa; desligar de verdade. O telefone já estava a alguns centímetros distante da sua orelha, quando ouviu um pigarro. Era um pigarro que ela já tinha ouvido antes. Era o da mulher da ligação do outro dia.

- Quem é? – perguntou Melanie, um pouco nervosa.

A mulher talvez tenha percebido a alteração na sua voz e entendeu que a garora a tinha reconhecido.

- Você é a filha da... – a mulher hesitou um pouco e concluiu com aquela voz rouca, cavernosa – Flávia?

- Sou. – respondeu Melanie - O que a senhora quer com a minha mãe? – a garota jogou logo a pergunta.

- Querida, tem muita coisa que preciso resolver com sua mãe. – a mulher tinha dificuldade para dizer frases com mais de três ou quatro palavras, sempre as finalizando com uma tosse – Ela ouviu meu recado ontem?

- Ouviu sim. Nunca vi minha mãe daquele jeito.

- Onde ela está agora?

- Foi trabalhar... Eu acho.

- Você sabe me dizer se ela está vindo me encontrar?

- Acredito que não, senhora. Acho que só foi trabalhar.

- Ela comentou algo sobre uma viagem?

- Comentou. Nós vamos viajar em breve.

- Disse para onde vocês irão?

- Não, senhora.

- Então, ela está vindo para cá mesmo. – a mulher falou como se estivesse afirmando para si mesma – E vai trazer a filha.

- Claro que eu vou junto. Minha mãe não me deixaria... – nem deu tempo de terminar, e Melanie ouviu o barulho do telefone sendo desligado.

A mulher mal-educada desligara na sua cara.

Quando Flávia chegou, Melanie considerou melhor não mencionar o telefonema da mulher misteriosa. Não gostaria de ver a mãe do mesmo jeito que ficara ao ouvir, na véspera, aquela mensagem.

- Então, meus lindos? – entrou dizendo Flávia, enquanto beijava a cabeça dos filhos – Sentiram falta da mamãe aqui?

- Eu senti. – disse Nicolas sorridente, ganhando mais um beijo da mãe.

Melanie olhou para o irmão e balançou a cabeça. “Como consegue ser tão puxa-saco, moleque?” – pensou.

- Alguém ligou pra mim? – perguntou Flávia.

- Não. – respondeu Melanie, sem mirar os olhos da mãe. Se assim o fizesse, com certeza, entregaria que estava mentindo.

- Ligaram sim. – revelou Nicolas, com ar superior – Aquela mesma mulher que não para de tossir.

“Ferrou!” – pensou Melanie, encolhendo-se no sofá. “Esse fofoqueiro ouviu.”

- Quem de vocês que atendeu? – irritou-se Flávia.

Nicolas acenou com a cabeça, apontando Melanie.

“Peste! Você me paga!” – prometeu Melanie, fuzilando com os olhos o irmão.

- Não acredito, Melanie! – explodiu Flavia – Você não iria me dizer nada?

- Claro que não, mãe. – respondeu ela, gesticulando – Não se lembra de como você ficou da última vez?

- Você não pode esconder essas coisas de mim! – esbravejou Flávia, segurando a filha pelos braços – Nunca mais tente esconder nada de mim.

- Calma, mãe! – respondeu, assustada, Melanie – É só uma ligação.

Flávia soltou-a e percebeu o quanto tinha se alterado.

- Ela ligou, eu atendi, ela perguntou por você, e eu disse que você não estava. – explicou Melanie – Ela desligou. Só isso.

Flávia passou as mãos pelos cabelos e respirou fundo. Em seguida, olhou para Melanie e passou a mão pelos cabelos da filha.

- Está bem. – disse Flávia calmamente – Se por acaso essa mulher ligar de novo, e eu não estiver em casa, não fale mais com ela. Entendeu?

Melanie anuiu com a cabeça positivamente.

- Só eu falo com ela. – Flávia mordeu os lábios – Só eu!

A mãe respirou fundo outra vez e pegou a pasta da imobiliária. Teve a intenção de sair da sala. Antes de passar pela porta, virou-se para os filhos.

- Nós vamos amanhã. – anunciou – Não posso mais esperar.

E saiu. Melanie olhou para o irmão. Nicolas mostrou-lhe a língua.

- Isso mesmo, seu cobrinha. – sussurrou Melanie – Qualquer dia desses, eu corto fora essa língua afiada.

Nicolas deu de ombros e voltou a ver TV. Melanie colocou os neurônios para funcionarem. O que Flávia tinha de tão grave para esconder? Afinal, ninguém estouraria assim só por um simples telefonema. De qualquer forma, poderia estar próxima de descobrir alguma pista, pois a tal viagem do dia seguinte não parecia mais ser em função só do trabalho da mãe; parecia ter a ver com a mulher da ligação.